segunda-feira, 5 de abril de 2010

Crónica da Coisa

Tenho uma coisa para vos falar. Uma coisa que pode bem não desaguar em foz nenhuma. Mas é uma coisa que tenho cá dentro há já muito tempo e que faz comichão no meu cerebrozinho. Pergunto: Que coisa é esta a que nós chamamos de coisa que, por vezes, até a vemos em maiúscula? A palavra COISA deve ser a palavra mais interessante que existe no dicionário. E também a mais usada. Ainda que queiramos atribuir um significado, ele fica sempre aquém das expectativas. Pois só a Coisa tem o poder de resumir, por exemplo, vinte minutos de conversa:

- José, por que chegaste tão tarde a casa?
- Amor, estive a terminar umas coisas lá no escritório.

Bem, por aqui já se vê que José dispensou de argumentar exaustivamente a noite passada, ocultando todos os detalhes, incluindo aqueles em que a secretária se pôs numa pose convidativa.

Coisa é uma palavra de sucesso, uma palavra vadia, tem um jeitinho inofensivo, é um querer dizer pelo não querer dizer. É verdadeira, é mentirosa, está entre o pecado e o perdão, mas que a gente não se importa que ela assim o seja.

Dois amigos conversando sobre a Sónia:

- Então, conta lá.
- Fomos até ao apartamento dela e, depois do segundo copo, coisámos mesmo em cima da máquina de lavar.

Entendeu? Coisa substitui, órgão, objectos, acções, pode ser adjectivo nome ou verbo. Coisar nela às vezes conjuga melhor do que o amor. Coisa é uma mistureba de tudo e nada. É uma expressão de utilidade pública, é a fórmula para dizer que existe um Deus de todas as Coisas. Se tivéssemos que pagar taxinha sempre que a utilizamos, isso sim, ficava tudo coisado.

O intelectual é quem mais gosta deste termo. Saboreia-o na boca, dá-lhe um toque pitoresco ao pronuncia-la e solta a palavra Coisa num tal suspiro filosófico que, quem a ouve, fica-lhe a sensação de ter escutado o Fernando Pessoa em pessoa na fase que andava no ópio.

Recomendação: O idiota, para deixar de o ser, tem de usar mais vezes a palavra coisa. Porque ela é bem-vinda, é chique, basta ver que a poesia está infestada com essa palavrinha. Tanto que um dia tive uma coisa má. Só mais tarde soube que era figadeira.
Uma adivinha: Qual é coisa qual é ela que a mulher tem e que todo o homem quer?

Coisa é para macho usar, para quem gosta de coisar, para quem não sabe nada e sabe tudo. Coisa é para gente adulta que não sabe o que quer. As crianças, quando falam em coisa, ainda apontam o dedo.

Estás a ver aquela coisa acolá? Diz-se coisa porque de repente teve uma branca. Por isso é que o Tom Jobim disse: «olha que coisa mais linda…» Quando no fundo ele queria dizer: olha que boazona mais linda…

«O padre na missa disse coisas muito importantes» No fundo, aqui o coisa é para quem passou o tempo olhando outros tipos de anjos em vez de escutar o padre. Mais que cai bem, cai.

Nós, os homens, somos peritos em saber coisas, em dizer coisas, em segredar coisas. Coisa pode ser método introdutório antes de ir directamente ao assunto.
Melhor dizendo: é uma maneira elegante de dar uma triste notícia:

- Vou contar-te uma coisa. A tua mulher anda com outro!

Percebe-se que Coisa prepara o assunto e a mente. Ou seja, quando alguém diz: tenho uma coisa para te contar, sabe-se automaticamente que depois dali vai haver merda.

Gosto da célebre frase: «ó pá, há coisas que não podem ser ditas» Pois esta frase tem a virtude de nos pôr a pensar, a irmos ao fundo de nós, a criar elações, metafísicas, a levantar todas aquelas dúvidas que julgávamos desfeitas. Será que ele quis dizer isto? Ou aquilo? Ou aqueloutro? Às tantas não queria dizer nada mas, só o Coisa tem esse encanto, de nos transportar para outras órbitas sem sair do sítio.

«São coisas que acontecem! Isso é coisa de maluco! Como ele foi capaz de uma coisa dessas?» O coisa diz tudo sem precisar de grandes explicações, mas é covarde na forma de o dizer, não diz directamente na cara, fala mansinho, não quer ferir ninguém.
Exemplo, mãe para o filho: «Não te quero a ver fumar mais dessas coisas!»

Aquele que sabe umas coisas, é alguém cujo QI situa-se entre a inteligência e a burridade. Mas, normalmente a descair para este último.
O mundo sem coisa não teria piada nenhuma. Para se ser feliz tem que se ter muitas coisas. O amor é uma coisa à qual eu não dispenso. Antes do homem já a coisa existia, Deus coisou isto tudo, já o diabo está para coisar. Somos fruto de um coisificamento. Adão fez coisas que não devia e Eva ficou coisada. Quem não coisa não sabe o que é bom.

Só existe três tipos de pessoas: os dotados, os talentosos e os que têm jeito para a coisa.
Quem vê coisas, é como aquele que ouve vozes dentro da cabeça. Ouve, mas não consegue explicar muito bem. Eu sou muito inteligente, porque este texto tem 59 vezes coisa (a ideia era fazer mais 10, incluindo derivações e o macho da coisa). Quer saber uma coisa que nem ao diabo lembra? Não? Então xau, antes que me coise qualquer coisinha má!