quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Composição:


O meu primeiro dia de aulas

   
O meu primeiro dia de aulas não foi nada de especial. Como prometido, por ter chumbado de ano, furei os pneus da frente à cabrona da professora de inglês e fiz uma chamada anónima para escola a avisar que a mãe do Caixa D'óculos do professor de história dera entrada no hospital com um AVC para ele se meter no carro a correr e, consequentemente, ter um feriado. Cheguei à escola e prestei contas com o Bernardo, um queque que fede a vaidade, por não me ter deixado copiar no exame de matemática. A Joana veio pedir explicações por não lhe ter atendido o telemóvel durante as férias e, como resposta, abracei-me à Margarida, que ao menos essa faz-me os deveres e não me incomoda com o aparelho dos dentes. Antes de entrar na sala de aulas, dei um cachaço no Gordo para que pare de se lambuzar com caramelos espanhóis.

Também apertei os testículos ao Histórico que no ano lectivo anterior andou a fazer queixinhas e a dizer que eu fiz batota no jogo do braço-de-ferro com o Lunetas. A parola da Tina, que em tempos me fez uns manguitos, por se queixar ao director que eu andava a espreitar os balneários das raparigas, à mínima oportunidade, esmigalho-a. Estando a turma toda sentadinha, entrou a nova professora de ciências da natureza, com as pernocas todas à mostra, uns lábios vermelhíssimos e carnudos, que me deram logo uma ideia para lhe baptizar com uma alcunha. Cada um dos alunos fez a sua apresentação. E fiquei a saber que a da carteira da frente, onde normalmente estão os escovas, graxistas, tem os pais separados. Logo ali criei o boato de que o pai dela fugira com o tipo do supermercado porque, dias antes, apanhara a mulher em flagrante com a cunhada que, por sua vez, tem um filho lingrinhas a frequentar esquinas no Barreiro. Depois veio o toque de saída e, na confusão, fiz um calço ao Borboleta que deu de queixos no chão, a sangrar como um porco. Apontei culpas ao Sardento, que é tido como o pestinha, apanhando assim dois dias de suspensão. 

No recreio fui dar uns toques à bola e, na distracção de todos, assassinei a bola com uma canivetada e pus-me a Leste. Fui até à biblioteca dar uns arrotos e acusei os marrões de falta de sensibilidade. Vendi dois cigarros ao Espinhoso e alertei-o pela décima vez para não estudar tanto que faz ganhar pontos negros. De seguida tive um momento lúdico com a Margarida na parte de trás do ginásio. Tocou para a aula de português. Ó, como eu adoro as aulas de português! Dizem que a língua portuguesa é traiçoeira, mas não é. Às vezes é tudo uma questão de sotaque, de saber colocar bem a boquinha. O professor, um tipo novo, ar de quem faz apostas em corridas de cavalos, revelou ser adepto do estilo poético Haikus. Gritei, Hai quê?
A empregada, que não era nada de se deitar fora, trouxe uma circular a anunciar que este ano iam começar as aulas de Educação Sexual. Fiquei logo excitadíssimo, íssimo, íssimo, a perguntar onde, quando e a que horas. Terminada a aula de português, e saber que ia levar com o cego do Camões outra vez, fui ao bar perguntar se tinha unhas de porco. Disse-me que não. Foi o que eu suspeitei...Na primeira aula de físico-química, antes do professor entrar, ensinei os restantes alunos a destilar uma pedra de haxixe, assim como a maneira mais eficaz de esconder os vestígios dos nossos pais. Na aula de religião e moral foi-nos ensinado que o abraço é muito importante, e que uma apalpadela no rabo pode ser pedagógica. No primeiro dia de aulas os livros cheiram a novo, as salas estão lavadinhas, os mictórios cheiram a rosmaninho, e nas portas das cagadeiras escrevem-se os primeiros poemas de amor, como: amor, espero por ti na mata.

Todos os alunos estão sorridentes, entram com o pé direito. Só a Maria Ratona, por ser perneta, é que não teve alternativa. Na aula de educação física os rapazes ficam em pulgas, fazem o cerco às que trazem cuequinha fio dental, e eu, fartinho de assar frangos, cerco as que não trazem nadinha. A Mirolha estuda muito mas não vai lá. Já lhe disse que tem que meter uma coisa na cabeça, ou vice-versa. O senhor da portaria tem um quê paternal, nomeadamente quando diz: anda cá ao papazito. No fim das aulas fui para casa, a pé. Passei rente ao muro do Vilas e fanei-lhe umas uvas. Lancei piropos às moças das fábricas e cuspi no vidro lateral da camionete. 
Chegado a casa, sentei-me para jantar, a ver o telejornal. E o meu pai, todo salazarento, que acompanhava a notícia de violência nas escolas, disse em voz alta e agressiva: A culpa não é dos alunos. A culpa é dos cabrões, pataratas dos pais que não sabem dar educação aos filhos! Eu abanei a cabeça e concordei.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Pequenas memórias conventuais

A minha vida nunca mais foi a mesma desde que me mandaram embora do coro por falar obscenidades. Ninguém entende um pobre poeta, este gentil colaborador de revistas e jornais a troco de uma bucha. Voltei ao desemprego, à malandragem, ao sucesso entre os amigos. Eles gostaram de me ver e saudaram-me como se eu fosse uma criatura adorável. Feitas as contas, já lá vão vinte anos desde que fui parar ao seminário a ver se miraculosamente me endireitavam. Tenho saudades das freirinhas, dos bolinhos do céu, de lhes apalpar o rabo sem que elas imaginassem a intenção do acto. Mas não tenho saudades do Irmão Paulo, quando, à má fila, lia versículos bem pertinho do meu ouvido. Esse papa-hóstias, que estava bem era no Cambodja a ser...deixem para lá! Por sorte divina, salvei-me a tempo de não ser experimentado. Também tenho saudades de apanhar a Irmã Manuela a mijar de pé, no jardim, a fingir que cheirava as flores enquanto trauteava a Música no Coração.
Aprendi muita coisa por lá: a fazer a cama, a tomar banho diariamente, a enrolar charros, a esfregar o chão, a tocar prá missa, a reparar telhados, a amar a próxima...
Bem, pelo menos engordei com as batatas a murro que, quando não havia batatas, murro havia sempre. As freiras benziam-se assim que me viam. Achavam que eu era um pequeno demónio capaz de convencer um santo a pisgar-se da parede. A culpa não é minha. Fui abandonado ainda antes de nascer. Não sei como é que a minha mãe conseguiu uma proeza dessas, mas conseguiu. E vi-me sozinho no mundo. Achado num cesto à porta da taberna do Andrade. Andei de família em família. Os meus últimos pais adoptivos devolveram-me à rua. Mas graças a Deus tiveram o cuidado em me deixar de novo na taberna do Andrade, com um bilhete a dizer: não se aceita devolução!

Até que algum lambe-cus teve a infeliz ideia de me levar para o seminário. As noviças gostavam muito de mim, tratavam-me por menino e faziam-me festinhas. Mal imaginavam elas que havia um anjolas a crescer por dentro, com vontade de rachar-lhes o céu. Quando comecei a ganhar barba rija as coisas complicaram-se. As minhas mãozinhas indomáveis tinham de ficar quietas, e tinha dois padres austeros a tomar conta de mim. Sobretudo, quando as mui formosas freirinhas iam apanhar frutos das árvores e pediam-me para segurar no escadote. Ai de mim se lhes contemplasse as cuecas. Ia de joelhos até ao confessionário. Hoje sei porque me doem as dobradiças das pernas nas mudanças de estação.
Fiz a escola toda e fiquei a saber muitas coisas, nomeadamente sobre anatomia, já que cedo me revelei entusiasta em mexer em órgãos e afins. Um dia, mostrei a pila às meninas do coro, e elas, doidas como galinhas, puseram-se a cantar o tirolês. Com esta brincadeira levei com um processo em cima. Não na pila, mas sim na minha pessoa. A Madre chamou-me aos seus aposentos com um grito histérico de longe. E lá fui, triste e magoado, com a incompreensão do tamanho do mundo. Ordenou-me missionário em terras de África. Não tinha como desobedecer, interpretei isso como um chamamento, uma renovação espiritual. Só que, assim que me vi no meio de tantas negras rabudas e bonitas, foi o que foi. Acho que a minha maior missão por lá foi aumentar à taxa de natalidade. E novo processo contra mim. O que achei injusto. Contestei, invocando o amor sem protecção sendo a minha grande Obra.

Tive um regresso forçado e a Madre recebeu-me de vassoura na mão, que julguei que seria para bater, mas não. Tive de varrer dois hectares de terreno, inclusive as retretes. Foram vinte dias do pior. A rezar por mim abaixo. O certo é que me tornei menos zaragateiro e mais sociável e, como prova disso, foi a organização da Festa de Natal. Tratei de tudo sozinho, inclusive o convidar umas boas renas disfarçadas, que deram animação àquela pasmaceira toda. Eram duas húngaras e duas eslovacas. Só mais tarde tive de justificar a falta de vocação delas quando chegou a hora de cantar na missa do galo. Estava-lhe pelos cabelos. A Madre superior disse-me estar na altura de ir. De me fazer à vida. E logo naquele empírico momento, em que a minha linda vocação estava prestes a vir ao de cima. 

Tive de ir pregar o evangelho para outro lugar. Ainda ajudei à missa em duas ou três paróquias mas o resultado era sempre o mesmo: rua daqui p'ra fora, seu porco, tarado! Enfim, a vida é dura e a incompreensão mais dura o é. Tenho fé que as coisas mudem, que Deus ponha mão neste poeta gentil, que é dado por um judas. Bem, pelo menos salvam-me os amigos que, lá por ter andado vinte anos em instituições religiosas, julgam-me um iluminado. É certo, os meus amigos gostam de mim, abraçam-me quando me vêem, pedem-me a bênção, sabeis porquê, caríssimos irmãos? Porque sou perito em conversa fiada! Ámen!