terça-feira, 31 de agosto de 2010

«a minha vida dava um livro»

«A minha vida dava um livro»


Quantas vezes ouvimos dizer «a minha vida dava um livro». Pois bem, sabendo que a iliteracia bate recordes espectaculares – e nisso tiramos vantagem de longe sobre qualquer país –, há que ter cuidado com o que se diz. Primeiro, porque existem vários estilos de livros e para todos os gostos e feitios e medidas e, quando alguém cai sem termos nestes termos, há que referir especificamente o teor do livro para não se cair em enganos, pois há para aí muita gente atrevida que aproveita qualquer deixa para criar graçolas de género porno-popular. Segundo, porque os livros não têm culpa das desgraças dos outros, nem tão-pouco servem de lenço de mão para choramiguices.
E terceiro (esta sim, a mais importante que Deus botou ao mundo) quem diz que a sua vida dava um livro ou é do Benfica ou é maneta. Do Benfica porque, só um grande benfiquista guarda na memória o passado e, ao escrevê-lo, ao avivar os tempos, será uma forma de limpar o pó das taças. Já o maneta, bem, esta era só para enganar. E a gente pergunta, ora diz lá tu ó mon amie por que é que a tua vida dava um livro?

- Tá calado, pá, a minha vida, ui, tantas coisas, ui, nem queiras saber!

Já sei, o pessoal responde assim para não sabermos já a história, muito menos o final, logo, quem quiser sabê-lo, há que comprar o livro, será? Ou talvez, esperem lá, eles não adiantam partes do livro que é para a gente não gamar ideias, sob pena de plagiarmos a vida deles.
Não entendo, estou “Confúcio”. Muita gente diz que a sua vida dava um livro, mas, o certo é que poucos a escrevem. Falta de editora? Estão à espera da implementação total do acordo ortográfico? Ou será que estão a adiar, adiar, adiar para haver mais páginas para contar, até ficar assim, bem grosso, depois mostrar aos amigos que as suas vidas são muiiito muiiitíssimo cheias. Olha, vês aqui, a minha vida, trezentas páginas, toma! A minha vida dava um livro… alguém me explica, por favor, por quê um livro. E por que não dois livros, ou uma tiragem de 300 exemplares.
Imaginemos se aquele que escreveu a sua própria vida, está a lê-la no repouso da sua sanita branquinha e, naquele momento magistral em que se ergue para l&mp*r o ku, pumba, cai o livro lá dentro. Já viram o desastre, a sua vida, na sanita. Depois está claro que se arrepende por não ter tirado fotocópias. Bem, com esta brincadeira já estou a dar um alerta. Amigos, para quem está a pensar em ter a sua vida num livro, ao fazer e ao fazer, mande logo imprimir uns dez ou vinte. Além de ficar mais protegido contra eventualidades, sai mais em conta, ouviram? Ó pá, mas que mania é essa de virem dizer: a sua vida minha um livro. O que terão as suas vidas de tão especial ao ponto de pensarem que alguém daria dez ou quinze euros por ela. E por que a vida não daria um disco? Ou um baralho de cartas? Ou um quadro com jarras pintadas? Mas por que raio um livro? Qual é a obsessão de se querer sacrificar uma árvore, que não faz mal a ninguém, só porque um lamechas se lembrou numa noite de copos que queria escrever o livro da vida dele. Às tantas julgam que escrever dá saúde, lá por o Saramago ter morrido aos 86 anos. Então para isso dediquem-se ao cinema, que duram pelos menos 100 anos, não é Manoel?
Sinceramente, não me entra no córtex central. A minha vida dava um livro…Esperem!, a não ser que a ideia passe em dar a escrever fora, como fez a Carolina Salgado, e afins. Poupa-se tempo e não se cansa a cabeça. Deve ser isso. Vamos lá ver uma coisa, as pessoas são totós ou quê, escrever um livro é ir ali à farmácia e pedir supositórios de inspiração? Olhe, faça favor, queria um Livrex em cápsulas. Em cápsulas não há, temos pena. Não, pena não quero, faz calo no dedo. Estou a ficar avariado, os livros de filosofia do décimo ano não falam disto, mas sempre ouvi dizer que todo o homem para ser homem deve fazer um filho, plantar uma árvore, e escrever um livro! Eureka! Ah, então vem daí. Ai estupores que não me avisaram antes de escrever esta crónica. Bem que podiam ter dito logo, rapaziada, assim não estava para aqui a atirar barro à parede. Ainda por cima começa pelas tarefas mais fáceis: fazer um filho! Ou será por fases? Só plantas a árvore se fizeres um filho. Só escreves o livro se plantares a árvore e fizeres o filho. Alguém está aqui a perguntar: e quem não truca-truca, nunca escreverá um livro?
Ok, eliminemos então esta questão idiota. Aguardem. Estou a pensar. Vou fazer um xixi e volto já. Ainda aí estão? Óptimo. Ora bem, ora bem… (não, não sou pago à letra, isto é mesmo assim) Ah, valeu a pena ter ido soltar a bexiga. Já sei a solução: Ora, quando alguém diz «a minha vida dava um livro» esse alguém não é parvo não, pois sabe muito bem, por a + b elevado à raiz quadrada vezes 69, que levará outra vida a escrevê-la, logo, são mais anos, de vida! Ó pá, posto isto sim, a minha vida é que podia dar um livro, mas infelizmente pá, o Kamasutra chegou primeiro…

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Coito interrompido

Se há coisas que detesto é que me interrompam em alturas indevidas, nomeadamente quando estou a fazer amor e o telefone toca, por exemplo. Ou quando o gajo das pizzas engana-se e bate à porta errada, que por acaso é a minha. Fico disléxico. Se eu fosse presidente do Irão accionava logo a bomba atómica.
Felizmente e ainda bem que não sou, caso contrário, isto já tinha ido, pois tantas são as vezes que me acontecesse ser interrompido no momento em que. Há pessoas que parecem que adivinham. Olha, vou cortar o contentamento àquele gajo e trrrimm, trrrimm. É um atentado ao meu machismo, pois acabo por ficar mal perante a parceira. Outras vezes nem me concentro direito só de pensar que porventura alguém virá tocar à campainha logo após os preliminares. As pessoas são burras ou quê? Então elas não sabem o quanto fica estragar a festa? Quem cura os danos que ficam na memória? Deviam saber que da forma como está o país e o mundo, cada erecção custa uma fortuna. E, “levantai hoje de novo” é só mesmo para quem sabe a letra toda.



Há erros que sinceramente deveriam dar pelo menos dez anos de cadeia que é para não haver chance de ninguém nos incomodar. Ou então pô-los outra vez a estudar na escola primária a ver se aprendem de uma vez por todas. Vocês sabem, né, que há erros que nos ferram por dentro. Que é o caso de estar a assistir a um filme japonês e de repente baterem à porta os da Jeová. Ainda por cima duas velhinhas, com ares de vela ardida, a impingir-nos um Deus novo e todo miraculoso; em vez de nos mostrarem as diferenças entre o pau-santo e pau de Cabinda.



É preciso boa dose de paciência para controlar o fogo que me arde nas veias. Detesto estar a ler o jornal, que é meu, comprei-o, e virem-me pedir a página dos classificados ou do horóscopo, por um minuto. Por um minuto, vejam lá. Como se um minuto fosse menos que sessenta segundos.



E eu, olhe, já agora, como estamos na época de empréstimos, podia-me ceder a sua namorada por um minutinho, prometo que a devolvo inteira. Por favor, não me chateiem quando estou a gozar um momento de introspecção. É o mesmo que ir perguntar as horas a um tipo que está há dois dias em meditação sobre um rochedo áspero. Claro que dá bronca, dá barraca, soa o gongo para iniciar o combate.

Vou na estrada, apressado, tenho uma queca para dar daqui a vinte minutos, a polícia faz-me paragem, e eu não tenho outro remédio senão obedecer e chamá-los à razão em Si bemol.

Acham isto bonito? Dá vontade de rir? E se fosse convosco? Havia de haver para estes casos uma sinalização de prioridade. Tipo, quatro piscas e um lenço vermelho de fora do carro para alertar os outros veículos, «desviem-se que tenho pressa para ir dar uma queca». Assim, nada disto acontecia, e chegávamos a tempo.
Perdi de dar uma por causa de uns senhores agentes que me fizeram o favor, e já que estava o tempo fresquinho, mostrarem os seus talentos vocais a duas vozes.

Que seca! Claro que fico amargo, pimentão, tal como estarmos apertadinhos de fazer xixi, já com as calças em baixo, (ou a maneira aberta, depende do usuário) e alguém nos diz, pá não podes fazer aí. O que fazemos? Apertámos a pila e vamos com ela para outro sítio mais apropriado? Humm, não me parece. Há alturas que interromper é um castigo equivalente a ter de adormecer com a voz do Cláudio Ramos ou assistir a um seminário sobre como matar-ratos-e-afins-à-base-da-leitura-de-textos do Miguel Sousa Tavares.



O coito interrompido é outra das broncas. Quem manda interromper, o pai dela, alguma lei de Fev. 1989? A gente ainda está a fazer e já está a pensar em interromper? Onde é que isto chegou?



- E quê, fizeram amor?



- Não, pá, foi coito interrompido.



- Tchiii!



Por que é que ninguém interrompe um padre a dar a missa? E quem tem coragem para interromper um bombista? Ir perguntar-lhe as horas ou convidá-lo para um cafezinho antes da explosão. Evidente que não. Ora, se o homem está concentrado naquilo, a pensar nas 75 virgens, só um idiota é que poderá fazer essa desfeita.



Interromper sai caro, por exemplo, em plena guerra, bombas a cair em todo o lado, disparos, até que alguém se lembra de interromper a guerra. Já imaginou o quanto perdia os fabricantes de artilharia pesada? Os médicos a ganhar sem fazer nenhum, os empreiteiros, as funerárias. E que tal um maestro parar meio minuto de dirigir a orquestra para coçar no traseiro. Não sei qual seria o resultado, mas posso palpitar que ia dar merda. Portanto, peço caridosamente que não me interrompam sempre que estiver a escrever uma crónica, é que, desse modo, perco o controlo da situação e viro o mais profundo ateu, se vocês não acreditam, perguntem às moscas que quando educadamente lhes mandei sair e elas não deram ouvidos. Palminhas!

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A sorte protege os audazes



É isso, a sorte protege os audazes! Zeca é um sortudo, há quem diga que desde nascença a sorte o acompanha, e vá-se lá saber porquê, com tanta gente a precisar de uma pontinha dessa sorte, logo tinha de calhar a um gajo que à sociedade nada dá.
Ele é roupas caríssimas, boas jantas, bom mulherio, não falta nada, a imaginação quer, a imaginação tem! Ah, e solteirinho da silva, como quem diz, sem horários para cumprir, sem horas de se pôr a pé da cama, num colchão que imita o mar alto ou sereno, dependendo da companhia; a primar pela biodiversidade no amor, graças ao seu sorriso pronto e umas lecas chorudas a espreitar da carteira. Há quem diga que tudo tem um fim.

- Esse Zeca abusa da sorte que lhe deram.

Saibam que os comentários nunca lhe destronaram a maneira de ser, pelo contrário, de dia para dia a sua exuberância duplicava e, para confirmação, oferece mais um pechisbeque à companheira de um qualquer fim-de-semana. Os dias consomem-se lentos mas rápidos, é a lei da vida. Da primavera ao outono vai um piscar de olhos. Os anos não poupam ninguém, nem um santo sequer, quanto mais ao Zeca que, de wisky em wisky começou a fazer estragos no fígado e arredores.
Mas aquela feijoada à transmontana…bem lhe avisaram para ele não se armar em guloso. Foi a morte do artista, como quem diz, a feijoada caiu-lhe no estômago que nem uma bomba, e daí até cair numa cama foi um tirinho. O elevar das mãozinhas a Deus era agora uma constante, ah, pois é, na hora do aperto até os surdos ouvem dizer que.

Neste caso, de nada valia o dinheiro para as suas horas de sofrimento e caganeiras consecutivas, nem os remédios nem os médicos que iam lá a casa.
Esgotou todas medicinas, desde a tradicional às orientais, alternativas, chás disto e daquilo, canjinhas, ninguém sabia detectar a raiz do mal que o fazia borrar-se por ele abaixo. A bem dizer, não se controlova, parecia um velhinho acamado à espera da hora agá, ao ponto de ninguém poder entrar no quarto que aquilo fedia mesmo. Coitado do Zeca, quem o viu e quem o vê! Nem o pó  para as assaduras  aliviava  a dor. Mas, ao contrário deste seu azar que lhe cobrava vermelhões nas naldegas de tanto alapar na sanita, muitas amizades riam-se afortunados por saberem tal desgraça.

- É bem feito!

A coisa parecia não dar tréguas, aliás, da noite para o dia as suas crises intestinais, cólicas, aumentavam e, os ais e uis, eram cada vez mais audíveis pelo quarteirão, que a vizinhança já se atormentava com o berreiro que o homem fazia quando a altas horas da noite se levantava a esforço com uma mão à frente e outra atrás numa de evitar uma outra soltura repentina, mais uma desgraça. «Ai meu Deus isto, ai meu Santantoninho aquilo, quem me acode desta desgraça, ai que eu vou morrer na merda!»


Como tudo o que comia o estômago não aguentava um nadinha e mandava logo pelo canal rectal abaixo, a sua magreza começou a notar-se a curtas vistas. Fraquinho como tudo, só pele e osso como os pretinhos de África. Os seus olhos a negar a vida, dores e mais dores de barriga fizeram com que o pior acontecesse: Zeca apagou-se sem avisar, sem dizer adeus ao mundo.
A notícia foi recebida com um certo desgosto, afinal de contas Zeca era um cromo que faz falta à caderneta lá da aldeia. Os preparativos do funeral foram tão rápidos que nessa mesma tarde puseram-no a corpo presente lá na morgue com umas quantas carpideiras contratadas a chorar pela alma do defunto. O funeral estava previsto sair às cinco, mas por razões desconhecidas teve de ficar adiado para a manhã seguinte.


Coube às carpideiras tomar conta do corpo nessa noite, aproveitando elas para colocarem as suas cuscuvilhices em dia, sobre este, sobre aquele que anda metido com a filha do Zé dos melões, quando, devia ser umas duas da manhã, pelo relógio da torre, o sono tomado de assalto, as velhas, que ressonavam como tractores, algo de estranho começou a passar-se ali na casa mortuária. Um cheiro tamanho fez acordar umas das velhas que tem o nariz bem alerta, e esta, sem freios na língua, tratou logo de acusar a amiga por ter soltado tal atrevimento. A acusada, no momento em ia dizer que tal remate intestinal não fora por ela rematado, outro par de peidos fez estremecer o lugar.


- Ai minha nossa! – Exclamaram as velhas carpideiras em coro. Mas, assim que se aperceberam que tais estrondos haviam saído lá para os lados do morto, deram à sola como gente grande.


Nisto, sem manobras de diversão, o morto, ou melhor, o ex-morto, o ressuscitado Zeca, graças á libertação dos gases acumulados, mais o alarido provocado pelas velhas, abriu os olhos, deu conta de si, viu que estava dentro de um fato escuro, e por sua vez dentro de um caixão, e, ao abrigo da sorte e da fé, agora bem mais aliviado da tripa e livre do mal, disse estas palavras:


- Olha se eu não soubesse assobiar pelo cu!




segunda-feira, 2 de agosto de 2010

amor com amor se paga

De repente tudo se ilumina. As ideias brilhantes fazem destas coisas. Se Deus quiser deixarei de andar pelas ruas a colar cartazes e terei todo o tempo do mundo para dedicar-me ao sol.
Sabem, aqui entre nós, há uma velha rica que me quer ver deitado. É como dizem na minha terra, mete-se um saco na cabeça, fecha-se os olhos e de resto é por amor à pátria. Ela está perto dos oitenta e contenta-se com umas festinhas bem leves.
Pode ser ordinário mas o resultado final será extraordinário: ficar com a fortuna dela: duas bouças, três automóveis e uma conta bancária bem abonada, recheada de zeros à direita. Ainda por cima sem parentescos. De resto, é só esperar que lhe dê um enfarte, uma trombose bem dada que a leve.

Há quem não considere mas, estar com ela uma vez por semana, a dar a dar, é já uma proeza, meritório de troféu e tudo. Claro que estou como o cangalheiro quando diz, não quero que ninguém morra, mas quero que a vida me corra. Exactamente assim. Basta ela assinar que eu pisgo-me. Até lá, tenho de fazer-lhe as vontadinhas, um mimo aqui outro mimo acolá, lavar os tachos, preparar a janta, ir ao supermercado, levá-la ao doutor, etc.

Nos entretantos a Judite ligou a dizer que queria voltar, que as saudades são muitas. Caraitas, logo agora que isto corria bem a Judite havia de aparecer do nada, cheia de projectos. Isto mal dá para uma quanto mais para duas. Mas enfim, disse-lhe, pronto, está bem. Para não meter as duas ao barulho disse à Judite que a velha era a minha avozinha de Trás-os-Montes, por parte do meu pai. Ela ficou taralhoca, pois sempre julgou que essa tal minha avó tinha falecido de congestão. Passou.

Tinha a minha vida partida em três, cuidar da velha, da Judite e eu próprio. Mas alertei-a:

- Judite, sabes que jogo à bola às quintas-feiras? O médico aconselhou-me a ter mais actividade física, sabes como é.

Ela torceu um pouco o nariz, pois melhor do que ninguém sabe que o meu talento é mais para bilhar de bolso. Passou.
E pronto, negócio feito. Às quintas-feiras saía de casa com o saco de treino às costas numa de disfarce e ia direitinho numa velocidade de ponta para a casa da velha por umas horas. O tempo de a pôr a sorrir. Depois vinha embora com umas boas notas verdes no bolso.
Quando chovia emprestava-me o seu chevrollet e, por saber que a vida é curta, aproveitava a chance e ia exibi-lo diante dos amigos, que se ferravam todos de inveja. Até a Judite sorriu, quando lhe disse que ganhara um segundo prémio na lotaria. Bendita hora. Uma vez mais festejámos em cima da máquina de lavar. Aliás, é para isto que serve um tambor avariado na sua louca trepidação: ajudar à festa.

Durante semanas andámos de restaurante em restaurante a provar bons vinhos e a apanhar pielas. O amor finalmente estava a entranhar-se em nós com uma nódoa num pano que não se quer lavar. A felicidade nunca tem palavras a dizer. Fixe. Os meus amigos voltavam um por um. É bom ter amigos assim, que vão, mas voltam. Para bem era mesmo a velha bater a caçoleta. A espera, neste caso, tinha consequências malignas para o meu corpinho cinco estrelas. A velha estava a exigir muito.
Mas, como a bem dizer era pago ao minuto, sujeitava-me, como se fosse o salvador do mundo. A velha, além da quinta-feira, quis mais um dia para si, argumentando que a solidão lhe esfriava os ossos e os sonhos. Lá tive eu, Jorge da Conceição, licenciado em solidões, chegar-lhe calor à pele.

- Judite, terça, começo as aulas de bowling.

Nova estranheza para os ouvidos da Judite, pois melhor do que ninguém sabe que sou contra isso de andar a meter dedos em buraquinhos.
 Às segundas ando no Karaté. Nos entremeios perguntava-me:

- Ó Jota Cê, e quando trazes cá a tua avozinha?

- Um destes dias, um destes dias.

A melhor forma de a fazer esquecer da existência da velha era prendá-la com roupas novas e colares tão reluzentes que faíscassem aos olhos das amigas.
Só que a cabrona da velha era danada, estava imparável, e não havia mal que lhe pegasse, nem as gotinhas de lixívia na sopa, nem as cambalhotas arriscadas. Comecei a ficar fraquinho de ossos, a beber Danacol’s a ver se a coisa melhorava, mas nada, de dia para dia ia desaparecendo como um bife no prato de um etíope.

Deixei de poder dar assistência. Vi-me grego. Isto de trabalhar sem fazer descontos dá no que dá. A assistente social lá quer saber de mim. A velha deixou de dar o respectivo, até o chevrollet foi-se. A Judite estranha tudo isto, estes repentes todos, hoje tudo, amanhã nada. Anda às voltas pela casa, a pensar no pão que vai amassar, a arrancar conclusões às cabeladas, a trocar as jóias por caganifâncias. No fundo amámo-nos como dois patriotas em terra alheia.
Outro dia, ligaram cá para casa. Ela atendeu e falou o que tinha a falar. Foi uma conversa curta. Com muitos hum hum hum da parte dela. Sem perguntar quem era, a Judite fez o obséquio de matar a curiosidade com um tiro no coração mas a salvar a barriga e o futuro:

- Imagina só. Era o meu avozinho!