segunda-feira, 29 de novembro de 2010

mas quem será o pai da criança


Não há memória de alguém assim. Homem com duas cabeças que nasceu lá na aldeia faz cinquenta e tantos anos. Dois velhos no mesmo corpo. Dois pescoços erguidos sobre um largo ombro. Duas vozes a responder diferente à mesma pergunta. A bem dizer, dois casmurros sem remédio que, se não fosse o pároco da freguesia a botar-lhes a mão não sei o que seria da vida deles.

Por serem assim, julgam as pessoas que eles já nasceram velhos, com as ideias meias enferrujadas, com talento para andarem à cabeçada um com o outro. Pois, senão esta, a melhor maneira de um mostrar a razão ao outro. Lá na aldeia todos conhecem o Micas e o Zicas. Um sortudo e um azarista. Um paciente o outro nem por isso. O Micas desfaz a barba, o Zicas já não. O Micas espera arranjar namorada, já o Zicas quer é conhaques e utilizar a mão esquerda para escrever poemas e mais sei lá o quê. Se um diz preto o outro diz branco, se um quer ir a Coimbra o outro quer ir a Viseu. Já se está a ver a grande barricada que para ali existe naquele corpo. Duas pessoas a decidirem o que hão-de comer é complicado, complicadíssimo, sobretudo quando partilham o mesmo estômago, o mesmo fígado, o mesmo coração. O Zicas come de tudo e mais o que lhe vier à boca, lambuza-se com pastéis de nata e toucinhos de porco, o Micas é  o contrário, evita fritos, gorduras, e passa-lhe um raspanete, até porque, o que cada um come sai pelo mesmo escape e quando sai grosso, o aperto é dos dois. Por isso é que por vezes se zangam, os cigarros que o Zicas fuma, faz padecer o Micas, e a tosse é de ambos.

O Micas acorda cedo e quer-se pôr a mexer da cama, o Zicas é um tormento para se despregar da cama. Se houvesse uma motosserra que os separasse bem divididos, sem que haja coisa de maior, com certeza que o Micas, o comportadinho, seria o primeiro a dizer que sim. Ter que conviver com uma cabeça que pensa exactamente o contrário de si, é obra. Mas, direitos ou tortos, lá vão andando pelos dias. Tantos que para se saber terei de multiplicar os dias pelos anos que eles têm. O problema maior é quando a um vem um desejo daqueles de ir às raparigas. Está-se mesmo a ver o sacrifício, pois é difícil arranjar uma mulher disposta a alinhar com os dois.

E foi precisamente a falta de uma namoradinha que começou a causar neles um tristemente amargurado sem fundo, sem literatura para a descrever. As duas cabeças aparentavam ares de terminal. Ainda virgens, sem nunca terem espetado o garfo, desconsoladíssimos da vida, quem é que aguentaria.

Mas um dia, um bendito dia, o próprio pároco, humanista como tudo, ao saber desta desgraça, encarregou-se ele próprio de fazer boas bondades ao Micas e ao Zicas onde, volta e meia, lá com as suas misericórdias, conseguiu arranjar uma moça que de vez em quando passeava lá pelos quintais. Ela primeiro hesitou, mas depois achou a ideia brilhante. No fundo encarou como uma experiência, uma espécie de ménage a trois ou um 2 em 1, como lhe queiramos chamar.

E foi no segredo dos deuses que o pároco, pelo denso da noite, meteu a mulher em casa deles. Apesar de serem duas bocas, quatro-olhos, quatro orelhas, dois pescoços, só havia um corpo dos ombros para baixo, logo, é fácil entender que só havia uma linha para enfiar na agulha. Fosse como fosse, eles lá se entenderam e a noite durou mais que o dia, dentro do quartinho onde o escurinho era tão bom, era tão bom. Aliás, única exigência da mulher para não levar tamanho susto ou arrepio.

Resultado: a coisa rolou dentro do que se pretendia: oferecer uma noite de sexo e prazer ao homem de duas cabeças. Só que, ou por uma falha de cálculos ou por excesso de energia daquela, nove meses depois apareceu o imprevisto: a mulher deu à luz um rapaz, um fedelho bem feitinho. O problema estava agora em atribuir a paternidade. Afinal, quem era o pai da criança, o Micas ou o Zicas? Quem é que tirou mais proveito? Certo é que o puto foi crescendo dentro desse ambiente, sem saber a quem chamar pai. Os tribunais não sabiam como decidir a coisa. Adiamentos em cima de adiamentos. Alguém tinha de dar colo ao puto e desembuchar o dinheiro para as fraldas.
O tempo foi passando e o processo arquivado. O homem de duas cabeças continuou a sua rotina dando ao badalo no sino da igreja e, quando o puto, já grande, de ranho no nariz, vinha a mando da mãe pedir algum para o sustento, tanto o Micas como o Zicas, que até ali discordavam e discordavam e discordavam, diziam bem alto a uma só voz: vai chamar pai a outro, pá!


nota desinteressante: como o puto era um irrequieto do caraças e com queda para carapau de corrida, facilmente se deduziu que era filho do Zicas, o atravessado, já que herdara um dom congénito. Não havia dúvida e assim foi. Mas, a dadas páginas da vida, o comportamento do puto mudou radicalmente. Tanto que mudou que acabou por entrar no seminário e em três tempos se fez padre. Enfim, suspeitas à parte, a hereditariedade já não é o que era dantes.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Ferra aqui que eu deixo!

Na verdade hoje tenho pouco a dizer. Estou a chegar do confesso e sinto-me leve.
Pelo menos poupei na consulta que tinha no psicólogo.
O padre tem a bendita paciência para escutar histórias macabras, coisas de puta madre, enfim, a minha vida de trás para a frente, tipo fita americana.
Tento manter este elo de ligação entre o chão e o céu, sabe-se lá o dia de amanhã e, entre o sim e o não, prefiro o talvez quem me ajude.
O padre já se habituou aos inúmeros pecados que, gentilmente, faço desenrolar tal como uma lista de compras. Peco aqui, peco acolá e depois, salda-se os pecados todos com umas ave-marias muito à minha maneira, ao meu estilo meio “analfabruto”.
Se há pessoas que sabe que a Zélia anda a marchar comigo às sextas é o padre Sintra, está a par de tudo, até dos ataques que ela tem de ninfomaníaca quando ao telefone me diz: «ferra aqui que eu deixo».


Depois, dá-me lições de moral a troco de umas moedas na caixa de esmola.
É justo.

Cada pecado tem um preço e não vale a pena pedir rebaixa. A vida é assim, uma simbiose entre uma pedra e um pau.
E foi assim que começou o mundo, à pedrada e à paulada, não é verdade, caríssimos irmãos?
Na escola dão-nos rebuçados se portarmo-nos bem, em graúdos dizem que os rebuçados fazem mal aos dentes. Sinceramente, já não sei em que ponto hei-de ficar, se a chupar rebuçados ou dar a chupar.


Isto foi um aparte, aliás, são os apartes que enchem uma história, um namorico, um amor sério. As estrelas não me inspiram sequer uma canção, mas a Zélia sim, quando ela quer leva-me ao cume do cume, sem grande esforço de ancas, diga-se de passagem.
Tenho ido aos ninhos mas não tenho a sorte.
Da última vez, convidei o padre Sintra para que fossemos os dois dar uns tirinhos lá pela mata. Logo se fez disponível e fomos num sábado de manhã, ambos bem equipados. Dentro dos fatos parecíamos duas alfaces, de caçadeira aos ombros.


Os melros nesse dia pareciam estar de folga, pois nesse sábado, ó diacho, é que nem melros, nem perdizes, nem nada.
O céu estava vazio.
Pássaros, só um papagaio azul, que mal sabia se pertencia à terra ou ao céu. Apanhamo-lo junto ao ribeiro, estava a molhar o bico. Meti-o logo numa gaiola.


Ainda assim o dia foi proveitoso, deu para conversarmos bastante sobre o país, sobre as gentes da aldeia, sobre a Zélia…, as habilidades que ela tem…, enfim, conversas de homens, onde se falou de tudo menos de putas, como é óbvio, visto que, padre que é padre, tem sempre más lembranças.


Metemo-nos no jipe e deixou-me à porta de casa. Depois de um dia grande só queria era cama. Estava como um abade. Barriguinha cheia, alma serena, a Teresa Salgueiro, com aquela voz de bezerro à nascença, no aparelho a embalar-me. Para coisa ficar completa uma queca vinha mesmo a calhar. Não foi possível porque a solidão não baixa as calças a ninguém.
Passei a noite toda a sonhar com pássaros.
Na minha mente, pássaros.
No meu corpo, pássaros.
Era pássaros aqui, pássaros acolá.
Houve uma altura que disse bem alto, porra para tanto pássaro e nenhuma gaiola!
Amanheci com uma vontade esotérica de desabafar lágrimas secas com alguém do sexo oposto.
A Zélia deixou de dar notícias, o que achei estranho, pois já passaram três sextas-feiras e não deu sinal nenhum.
Antes que entrasse por vias de depressão, peguei na bicicleta e fui à casa da Zélia o mais rápido que pude. Bati à porta as tais cinco vezes seguidinhas e ninguém respondeu.


Sei que Zélia tem um feitio filho da polícia mas não é pessoa de desaparecer assim do nada. Dei duas voltas à casa e tudo na mesma: a casa sem sinal de vida.
Pelo caminho alguém disse tê-la visto na igreja, que já nem parece a mesma, convertida na fé e nos braços do Senhor. E de facto sim, mal olhei a cara da Zélia, nem parecia a mesma, olhos vidrados nos santos, de joelhos no chão, a rezar com a devoção de um povo inteiro.
Aproximei-me. Nisto, o padre Sintra tocou-me e, num bafo de voz, disse-me:


- Deixa-a estar, Bilinho. Está no silêncio da sua oração a trilhar os seus caminhos. Ela sentiu o chamamento…


Pensei, quem diria. Mas não deixei trespassar o pensamento, guardei-o naquela gaveta da memória onde eu e a Zélia, juntos, fizemos boas transpirações.
Ao regressar lembrei-me em passar rente ao muro da casa do padre e pegar numas amoras que cresce para o lado de fora. Ouvi uns barulhos, uma voz a chamar. Resolvi subir o muro e pus-me à coca.
Era o papagaio. Quem o viu e quem o vê. Estava gordinho o filho da mãe.
O papagaio dizia umas coisas que eu queria entender.
Então, subi ainda mais o muro, mas com cautela, pois sobre ele tem duas fileiras de arame farpado.
No ponto alto do muro, escorreguei para o lado de dentro, bati de cu no chão e fiquei num oito. O papagaio bateu asas, como que aplaudindo, o sacana, fazendo troça de mim, ao mesmo tempo que dizia naquela voz telecomandada:


- Ferra aqui que eu deixo! Ferra aqui que eu deixo!


O padre apercebeu-se e falou:
- Quem vem lá?


Desta vez fiquei calado.