terça-feira, 23 de agosto de 2011

Por falar em crise

Eu estava sentado na esplanada a ler uma revista sobre as estatísticas do divórcio. O sol estava muito perto de mim. Encontrava-me numa das praias do sul cujo nome não me convém referir por motivos pessoais. (adoro os motivos pessoais!) 
De férias, tinha as moças de biquíni para me alegrar. Um batido de sumo natural com chapeuzinhos engalhados fazia-me acreditar na vida eterna. No mar havia surfistas que, quando caíam da prancha, eu imaginava tubarões a fazer-lhes cocegas nos pés. Entretanto tinha pedido um pires de camarões e uns quantos lagostins para o estômago não me acusar de irresponsável. Saboreei cada perninha do marisco ao ponto de deixar água na boca às pessoas que passavam. O hotel onde estava instalado foi escolhido pelo chefe da minha empresa, como recompensa do meu desempenho. Era um hotel cinco estrelas, com campo de ténis, campo de golfe, piscinas, massagens privadas, ginásio, etc, frequentado por jogadores de futebol, artistas de cinema, escritores em fase de expansão, etc. Fiquei na suite presidencial, com direito a tudo e mais alguma coisa. Mas dizia eu. Estava sentado na esplanada, a adoçar o bico, ora com o melhor vinho das adegas, ora com olhares sobre as ondas. Nisto, uma estrangeira, daquelas de capa de revista, deitada na areia fina da praia, acenou-me. Certifiquei-me que o aceno era para mim e, depois de confirmado, acenei-lhe também. Fui ter com ela. Não paguei a conta porque estava tudo pago. O meu chefe havia dado ordens supremas para que todas as despesas fossem encaminhadas para a empresa. Incluindo diversão. Bem, quando cheguei perto da moça, aí vi que ela era a filha herdeira do dono do hotel. Confesso que fiquei um pouco tímido, mas, quando me pediu para lhe passar creme protector solar nas costas, perdi logo a timidez, e dei a vez a um tipo cheio de experiência. Estava nas sete quintas. Quem diria que logo no primeiro dia de férias tal sorte me iria calhar. 
Após uma boa dose de conversa, fomos dar uma volta no iate que tinha à minha disposição. A meia légua da costa, ela tirou a parte de cima do biquíni e mostrou que tem ido ao ginásio. 
O mar estava calmo, uma leve brisa fazia o corpo pensar, e um grupo de golfinhos exibia-se para as nossas máquinas fotográficas. Fizemos mergulho e visitámos corais. Foi lindo!
O iate era daqueles que muita gente daria a vida só para pôr um pezinho em cima. Bar, cama, hidromassagem, LCD. Até uma orquestra sinfónica havia. Eram uns tipos contratados para dar mais feeling à coisa. Foi uma tarde em cheio! Salvo erro, fizemos amor umas oito vezes. Oito não, talvez seis, ou três, ou, esqueçam. Fizemos amor. É só do que me lembro. Ainda recebi uma chamada do chefe a perguntar se estava tudo bem. Que não me poupasse em nada. Ah, e o iate ficaria para mim. 
De tão feliz, atirei os músicos à água e pus-me a dançar Fox-trot mais a Gabriela, até a noite chegar. Dali, metemo-nos no Porsche e fomos de volta ao hotel onde um buffet do melhor e do mais sentimental esperava por nós. Enquanto nos deliciávamos com caviar e champanhe francês, um grupo de bailarinos exibia uma dança entre cada prato. Falámos sobre projecções futuras, possíveis alianças, e quem sabe, comprar uma ilha e criarmos os nossos filhos no mais conceituado colégio de Nova Iorque. Ela disse que sim, eu sorri-lhe para o decote. Quanto mais sorria, mais o decote se abria. Por fim, uma gargalhada. A noite estava quente. O perfume dela entrava-me nos ossos. Mais à noitinha, participámos num leilão de arte e, como estava de espírito aberto, adquiri um quadro de René Magritte por uns poucos milhões de euros para oferecer à Gabriela, como prova do nosso amor. Ainda estivemos uns minutos à conversa com o rei da Prússia. Pessoa culta, que elogiou o bom gosto do meu Rolex em ouro maciço para, de seguida, dali, irmos aconchegar os corpos num colchão de água. O chefe voltou a ligar a lembrar-me que férias são férias. Ligeiramente exaustos, não fomos além das duas quecas seguidas. Restava-nos o sono, embrulhados em lençóis de seda perfumados. 

O dia seguinte prometia aventuras pelos céus num jacto privado. Visitar o Jurassic Park, montados num camelo; fazer parapente, participar em banquete, e por fim, yoga. E foi ao som de um qualquer prelúdio de Bach que adormecemos e sonhámos com o milagre das coisas. Nisto, ainda com sabor de amoras na boca, alguém bateu à porta e, sem pedir licença, entrou. 
De olhos fechados, e um pouco de remela a impedir que os abrisse imediatamente, imaginei uma loira a trazer o pequeno-almoço à cama mas, assim que um balde de água fria caiu sobre mim, gritei: merda, gaita! Era o cabrão do meu chefe aos berros, gesticulando ferozmente, a enxotar-me com os pés para olho da rua, por estar a dormir no local de trabalho em horas de trabalho. E assim, “Gracias a la Vida”, era uma vez um sonhador.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Tal cão, tal dono


Sei que não é hora nem momento, nem sei se a paciência está em bons dias. Detesto deixar as coisas pela metade. Ter de subir as calças só porque palpita que vem aí o pai dela. Mas a vida é assim, um tira e põe, tira e põe. 
Estou condenado a nada. 
A Judite quer-me a tempo inteiro, como se amar fosse um ofício, uma declaração de princípios à qual não podemos mudar uma linha. Meus amigos, o amor quer-se cavalo à solta. Que seja assim. Estou marimbando-me para os cavalos. Há dias recebi uma queixa em casa, não por carta, não pela Internet, mas pela boca dos vizinhos. Que o meu cão anda a provocar desassossegos nas cadelinhas, ora vejam lá. Por jeitos, salta os muros para lhes chegar. Em suma, as cadelas estão em vias de ficarem todas prenhes. E, caso isso venha a acontecer, alguém terá de ser responsável pela ninhada. Neste caso, eu. Já lhe tentei chamar a atenção mas, que querem, o cão não me dá ouvidos. Está viciado na coisa. Que, ainda por cima, vejam lá o meu azar, está apaixonado pela cadela do quinto esquerdo. E foi precisamente a dona da cadelinha do quinto esquerdo que no outro dia veio tocar à campainha. Fiquei logo chateado. Primeiro, porque nesse dia perdi de ver as Tardes da Júlia. Segundo, porque não consegui pôr a gravar as Tarde da Júlia. E terceiro, por causa das duas alíneas anteriores. No entanto, assim que abri a porta, ao topar aquele cabelo loiro, aquelas pernas esguias, a fazer lembrar as moças da passerelle, ganhei logo outro jeito, uma afabilidade à Pai Natal, e disse-lhe: 

- Sim, faça favor de dizer.
- O seu cão é um malvado!
- Como assim?
- Anda sempre em cima da minha cadelinha. Ou lhe dá educação, ou então, o melhor é castrá-lo!
- Deixe estar que resolverei isso de outra maneira.

Não tive outro remédio senão o de chamar o Bobby a um canto e dar-lhe uma repreensão valente, assim como levar a cabo umas sessões espirituais para lhe limpar a mente de certas depravações. Duas semanas foram suficientes para que o Bobby amansasse das ideias. E, para sorte dele, não foram precisos remédios para lhe cortar os ânimos. 
O meu Bobby dedicava-se agora à leitura e a construir aviõezinhos de cartão. Tornou-se um exemplo de como se vence na vida com a força exclusiva da vontade. Se continuar assim, ainda há-de vencer umas olimpíadas de matemática. Começou a frequentar bibliotecas e pastelarias requintadas. Entrou em celibato e as queixas deixaram de surgir. Era um senhor cão! Os dias foram feitos nesta monotonia, sem grandes aventuras, grandes voos, grandes quimeras. A Judite voltou cá para casa, e com ela, as malas do passado. Festejámos a vinda dela em cima da máquina de lavar. A tal que tem o motor meio avariado para aproveitar a trepidação. Oh, como foi bom recordar! Enquanto a Judite fazia umas limpezas em casas particulares eu ganhava algum a colar cartazes de publicidade pela cidade ou a pôr folhetos nos vidros dos carros. Por vezes fazia-o de noite, pela fresquinha. O Bobby entretinha-se com a sua paz. A vida devagar sempre rola com mais cautela. À Judite deu-lhe para embirrar com o cão, que é um pasmaceiro, que não se sente à vontade em fazer amor comigo pois o danado do cão repara em tudo, põe-se a olhar com aqueles olhos fundos. Chegou a uma altura que foi do tipo: ou ele ou eu. Tinha ali um bico-de-obra dos diabos. O Bobby assistiu à conversa e decidiu por conta própria sair de casa. Dei pela falta dele numa manhã. Procurei por várias ruas e não o encontrei. Pus uns panfletos a dizer «Procura-se, dá-se recompensa». Pois este cão era tudo para mim. Não o trocaria por nada deste mundo.

A Judite não gostou da ideia e pirou-se sem dizer nada. Dias depois, bateram-me à porta. Era a loira do quinto esquerdo. Estava em lágrimas, a perguntar se vi a cadelinha dela, que por jeitos sumiu pela calada da noite. Convidei-a a vir sentar-se no sofá para animá-la com dois dedos de conversa, ou duas pernas, ou quatro pernas, tanto faz. Bebemos uns licores de umas garrafas que tinha por abrir, que deveriam ser para a altura Páscoa. Como todos os dias vinha cá a casa saber se havia novidades, começou a surgir entre nós uma química, e depois, uma física. 
Sem dar por nada, estávamos a viver juntos há dois meses, a chorar a partida dos nossos animaizinhos de estimação. Numa bela noite, a tomar embalo com umas beijocas, alguém ligou. Atendi.

- Olhe, encontrei o seu cão juntamente com uma cadelinha!

Com a mão a calar o telefone, olhei por uns segundos a minha vida, a loirinha, a cama e a roupa lavada, comer na mesa, o futuro a sorrir como uma criança. A vida está difícil para dois quanto mais para sustentar animaizinhos de estimação atrevidos, capazes de mudar o rumo das coisas. Desliguei o telefone friamente.

- Quem era, amor?
- Ninguém, ninguém, foi engano.