terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Como se faz um país?

Hoje acordei com a sensação de sábio. Desculpe este egocentrismo mais dilatado que o meu próprio umbigo. Isto de pensar sem equacionar os prós tem os seus quês, que, por vezes, accionar a alavanca do pensamento tem as suas inglórias, logo: “é mais um tijolo contra a parede”. Hoje foi assim: acordei com a pergunta no céu-da-boca: como se faz um país? Uma questão tão simples mas que me estragou logo o pequeno-almoço na pastelaria ao pé da Guarda Republicana.
O meu bolinho de arroz matinal desta vez soube-me a restos de implantes mamários. Andei meio coxo devido à responsabilidade do ter que responder a esta pergunta, que se desarrolhou de um sonho meio sonâmbulesco.

Certo ou errado é que, ao passar por um edifício em construção tive um clique! Pois bem, areia e cimento será sempre necessário para começar qualquer coisa, até mesmo o amor, já que, amar ao relento, não traz benefícios fiscais. Ou seja, um país faz-se do mesmo modo que se ergue uma casa: com muita areia e cimento! Mas esta pequena ideia não bastava para concluir o meu país. Reparei então num cego que pedia. Intuí: eh pá, um país precisa sim é de ceguetas a estender a mão para que outros se possam governar. Exactamente, sem tirar nem pôr. Lé com cré. Criar uma consessão de pedintes e sub-pedintes para um bolso só. Mais adiante reparei numa rua que, por ser esburacadamente bela, dá muito serviço ao agente próximo da funerária. Fantástico!
Depois, sem querer, descobri homens e mulheres rapando os contentores, dilatados nos estômagos pela fé e pelo feijão que o supermercado não vendeu e deitou fora. Mas estava limpinho!
Aqui, neste pim pam pum, fiquei de sensação cheia de que o meu país começava a ganhar contornos. Muita fome, miséria a posar para a fotografia, prostitutas, proxenetas, crocodilos, simpatizantes, Barbies na banheira, hipocrisias, lá diz o João, lá diz o José, também fazem falta para compor uma nação.

Ao passar perto do tribunal, calhei de ouvir um magistrado dizer a um vagabundo: agora vê lá se te portas como deve ser, meu rapaz! O vagundo, assim que pôs um pé fora do tribunal, socou dois polícias, apertou o nariz à senhora do balcão, urinou contra o edifício público, mandou sete balas para o céu e dois por debaixo das pernas arcadas, numa imitação perfeita do John Wayne, que até o magistrado comentou com um colega da magistratura: - Como eu adoro este rapaz. As coisas que ele sabe fazer!
Entre tábuas e arvoredos vi e ouvi um senhor de Lamborghini a dizer a um puto: queres andar a 200 km\hora, meu menino? O puto maravilhou-se, entrou no carro, e nunca mais se ouviu falar nem de um nem de outro, a não ser por fotografias. (O do Lamborghini era o que estava a sorrir).

Um país faz-se ao contrário do amor, sem escolher o melhor chão, faz-se em segredo como os amantes, com assinaturas falsificadas, muito enredo, com muita bosta, corrupção, anestesia para os neurónios, matança em câmara lenta, com muito filho da puta a vir à televisão dizer está tudo bem, está tudo bem, olhem só p’ra mim! Um país faz-se com mais ignorância do que sabedoria, se for à sombra da bananeira é que é bom, enquanto se olha a senhora Crise a depilar-se toda para encornar milhões de gente.
Faz-se com porrada em cima do lombo daqueles que tentam dizer um ai da boca para fora, faz-se no escuro, a apalpar o rabo uns aos outros enquanto se discute matéria de Estado e em que bolso se há-de meter a mão. Um país faz-se entre as três e as cinco da tarde, que é quando dá mais vontade de fazer necessidades fisiológicas. Mijar, para ser mais preciso. Faz-se num campo de batatas, como quem as semeia, mas se te abaixas mais um pouco…

E assim, meus amigos de várias idades, a maqueta ia-se fazendo, evoluindo, dentro da minha cabeça como um peixe a crescer, quando, ao comparar as semelhanças com este nosso querido país, pensei: eh pá, se já tenho este, para quê querer outro igual? Então comecei a correr, a correr muito, feliz, muito feliz, por saber que moro num país paisagístico que não cobra por chorar, que tem o fado e a saudade que se amam mas que não fornicam, e tem poetas e críticos como eu para converter lágrimas numa bebedeira azul, e tem a morte a vida no mesmo envelope aqui na caixa do correio, e tem a noite e o dia com cara de pau, e tem o amor e o ódio a costurar sonhos com fios de lágrimas, e tem o certo e o errado a rapar o prato, e tem acima de tudo, abaixo de nada, para quem pode, para quem phode, o domingo para descansar!

sábado, 25 de dezembro de 2010

Enfim, nunca pior

Até aos 35 anos achava-me um tipo especial. A minha caixa de correio era invadida por cartas com declarações descaradas de fulanas que conhecia por aí. Na mesa de um bar, havia sempre um lugar para mim, davam um jeitinho para lá, para eu caber. Até a liberdade de pôr os cotovelos na mesa e tossir umas piadas me era permitido. Até essa data tinha um negócio que rendia, apesar de o Estado não me reconhecer tal mérito, uma vez que o evitava dado aos meus negócios pouco fundamentados.

Comprava relógios de pulso semi-avariados, ao que depois de algumas mexidelas neles, ficavam aptos para transacção e o lixo já não era os seus destinos. Vendia-os a preços de fazer crescer os bolsos e, o meu Ego alternativo, agradecia. Tudo corria de vento em pompa, inclusive tinha um projecto para uma casita metido na câmara, em andamento. Juntei negócios a outros negócios. Senhores do banco davam-me cumprimentos ainda que estivesse a dobrar a esquina. De sucata fazia obras de arte dignas de andar a mostrar de café em café. Ora bem, para além dos relógios, vendia uns cristoszinhos em imitação de pau-preto, umas pratas banhadas a ouro, etc.
Até que um dia deu-se o caso: o fornecedor resolveu bater a bota sem anunciar, assim sem mais nem menos, e eu, fiquei com o stock reduzido a meia dúzia de tringalhos para pendurar ao pescoço. Por consequência, deu-se a falência acompanhada de uma banca rota a todos os níveis: quer física quer mental. 
Agora estou na casa dos cinquenta, vejo a minha vida sendo ultrapassada por figurões mais habilidosos. Bem tento sociedades, mas como é preciso entrar com algum, fico-me pelo projecto rascunhado em guardanapos. Vou aos mesmos sítios e ninguém se chega para lá para eu poder caber. Deixei crescer pêra a ver se fintava a má sorte anunciada, mas mesmo assim entrei em descrença geral. Antes, as pessoas diziam-me, “tem tempo para pagar”. Agora, perguntam “deixa ver quanto é que tens na mão?!”, com o medo que lhes espete uns tentos. O trato de você desceu para tu isto, tu aquilo. O meu carro, que tanto sucesso me deu, tem neste momento um papel colado no vidro de trás a dizer “VENDO”. A minha prosa deixou de ser útil e agradável às moças que elogiavam os meus casacos de cabedal genuíno. Os meus amigos já não respondem às mensagens do telemóvel. No café não existe ninguém que se ofereça para jogar comigo à sueca. Por isso, dedico-me às paciências e, mesmo assim, só com algum trocadilho é que consigo ganhar. Os dias passam, as pernas vão-se cansando ao ponto de formarem um arco. O vento parece estar cada vez mais irritado com as questões humanitárias, a solidariedade já conheceu dias melhores; há caninos na opção do menu. Tudo mudou. As mínimas vontades caíram em desgraça. O planeta está decidido a não perdoar. Deus deixou recado mas ninguém quis ouvir. Qualquer coisinha que metemos à boca já dá vómitos. E por aí adiante. Por isso, eu não tenho a culpa que a Sorte tivesse guinado o volante no começo de uma recta. Ando só, embutido neste turbilhão de gente que se arma em feliz. Mas cuidado, nem sempre a fruta mais apetecível é a que tem melhor sabor! Há sempre um dia em que o sonho nos prega uma partida e aí, quero ver quem é que se vai governar com pouca sabedoria. De todo o resto, e alterando um pouco a cantiga, sou teso mas sou feliz!, passo manhãs inteiras no corredor do departamento das finanças, preenchendo formulários a velhinhos mal informados, a troco de uma bucha de qualquer ninharia, uma gorja; alguns até me chamam de doutor. Enfim, nunca pior!

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Só uma coisa se compara aos prazeres da cama: que é a sanita. venham doutorados, dramaturgos ou psicadélicos dizerem que não, mas, ó meus amigos, a sanita, o acto de sanitar, é, e aqui afirmo com convicção poética, um culto à humanidade! bem haja o seu inventor! sei que não acrescento nada de novo, pois toda a gente sabe que heinsten descobriu a fórmula da teoria da relatividade no momento alto em que puxava a retaguarda com uma ferocidade medonha, onde no seu pico máximo, gritou: e=mc, que, depois de ficar mais solto, aliviado o trânsito intestinal, suspirou: ao quadrado! e desta forma teve a sua eureka: e=mc ao quadrado. o senhor kafka, segundo notícias do sanatório, escreveu o Processo e a Metamorfose comodamente alapado na sanita, sem se preocupar com quem estivesse a seguir. não se surpreenda com estas revelações, eu próprio estou a escrever este texto com as naldegas numa retrete branquinha, enquanto espero pacientemente de fazer a minha vida. aliás, e desculpe o meu exagerado presuncionismo, pergunto: quem é que nunca leu uma página de livro, revista, carta de amor ou enviou mensagens pelo telemóvel enquanto arreia o calhau? quem é que nunca se sentou com o portátil nas coxas enquanto obra? é um prazer, você sabe que sim, a gente ali, em módicos pensamentos ancestrais, num auto-conhecimento, deitando por fora toda a tristeza, ora diga lá se não é. Mais: cagar é como o sexo: para bom funcionamento do corpo e alma é preciso quase um ritmo diário, um reloginho interno que, se falha por dois ou três dias, ah pois é, vai a nossa valentia para o tanas, e ainda por cima sujeitos a ser supositoriados.
aliás, esse equilíbrio é tão importante que, se houver greve em uma das partes, o nosso pensamento foge-nos para guerras frias.
saibam desde já que discurso de político também ele é feito dentro desta magia. nossos olhos viram para dentro, há um arrepio de pele, uma força cósmica nos queixos e pescoço quando puxamos por ele, o tal, que começa em ca passa por ga e acaba em lhão. meus amigos, este texto pode não ter poesia necessária, mas uma coisa vos digo: cagar é viver! e não se sensibilize, nem feche os olhos por ler o que leu, pois a vida termina no dia em que a tripa der um nó. dirão vocês que sou um desenvergonhado, que a minha literatura é feita de esterco. enganam-se aqueles que pensam que sim, já que a maior parte dos profetas antigos foram altamente iluminados antes e depois do tal acto que vos venho falando. é certo que a espiritualidade aumenta, a nossa comunhão com  as questões universais, idem aspas, a nossa relação com a literatura é um caminho de descoberta. vejamos, eu próprio descobri, por estes dias, no frescor da minha casa-de-banho, margarida rebelo pinto, o que me deu um enorme prazer, pois agora sei - e recomendo - que há géneros literários especializados em casa-de-banho. a TV7+ também tem boas crónicas para o efeito. a revista Maria, já não, pois tem um formato muito pequeno e as folhas têm uma textura que...sinceramente...arranha.
poderemos largar todos os vícios, negar os prazeres da amante, deixar de dar banho ao cão, mas, meus senhores, por mais bons costumes que tenhais, acabareis sempre numa retrete e, na maldita hora em que fizermos por nós abaixo, lá se vai o nosso Ser, a nossa metade, porque, enquanto tivermos forças para puxar, o nosso sorriso é de oiro.
nunca se esqueça: cagar é viver! e, quem diz que a vida é assim ou assado, não sabe o que diz, porque, como diz e bem o meu amigo poeta Laureans: “A vida é a única merda que vale a pena cheirar”.
Foi num dia que passou e o ventou rimou no face da rapariga. ela era linda como o sole. tinha uns olhos meios egípcios meios romanos. uma maneira de pegar no cigarro que sinceramente foge-me o pensamento para outras bandas. um cabelo, oh, um cabelo liso que nem Dustin Flemming seria capaz de reproduzir, quanto mais Baudelaire nas suas expressões de quadricomia. as suas mãos inspiram qualquer poeta de rua. ela ali, sentada, ar culto, mexendo o açuçar no café, em movimentos circulares e pensativos. talvez uma estudiosa de Fernando Pessoa, ou bióloga marinha, ou então quem sabe, ambas as coisas. esperei que ela se fosse, disfarçando uma leitura no jornal. eis que se levanta, com leve esforço, coxeando em uma das pernas. desde esse dia, a cultura deixou de ter significado para mim.