quarta-feira, 21 de julho de 2010

a crónica mais bem educada do mundo

Esta crónica é a crónica mais bem-educada do mundo. Dela não ouvirá um caralho sequer nem tão-pouco um filho da puta de um palavrão como muitos cronistas gostam de exibir perante os seus amados leitores.
Esta crónica, pelo contrário, tem classe, tem charme, tem a distinta lata de não falar mal de ninguém, nem daquele urso que foi fazer queixa de mim ao senhor da adega, nem daquele outro que anda a dizer que fui eu quem inventou a lâmpada.

Porque esta crónica é diplomada em boas maneiras, à inglesa, não é como o meu primo António que só diz merda da boca para fora nem como o camelo do Luís que é um atrasado mental.
Não, de jeito nenhum, aqui não encontrará nada de imoral nem prática de maus costumes. Cada frase é pensada ao milímetro, tem um quê de poesia vindo dos canos. O estimado leitor merece o melhor do melhor, pois é para si que dedico a minha vida inteira. Esta crónica antes de ser editada, fez um curso de etiqueta, andou pelo jet7 a aprender como se come à mesa, tomou café com ministros, viu filmes do Noddy e do Rucca. Portanto, não haverá defeito nenhum a apontar. Mas aviso já, o primeiro que levantar um dedo, um dedinho só para fazer queixinhas aqui e acolá, está automaticamente fodido comigo, e saibam desde já que tenho amigos ciganos e alguns são maricões com vontades intrínsecas.

Não me levem a mal esta minha diplomacia, é que, sabem, custou muito aqui chegar, passei as passas do Algarve a pensar que era coisa de se fumar. Mas fodi-me, perdão, lixei-me. Esta crónica é feita com muito vinho mas não chega a dar bebedeira. É uma espécie de amiga dos pobres. Praticou meditação, esteve longas horas à conversa com a madre Teresa de Calcutá a aprender a ser solidária, evitou ouvir discursos políticos para não se deixar influenciar. Logo, por aqui tudo é claro como o vinho, leve como as pedras que carregamos para o monte da felicidade. Nada aqui é contraditório, pode-se arrancar daqui toda a verdade que ainda ficará alguma de sobra para uma boa dúzia de mentirosos. Com certeza que já reparou desde o início que esta crónica tem uma leveza tal que é capaz de fazer o mesmo efeito que o Viagra. Sim, foi educada à nascença, a ter boas companhias, a evitar drogas pesadas, as leves é só em festivais e ressacas só de quinze em quinze dias e vésperas de feriados e aniversários de amigos e bodas. De resto, sempre branquinha como o aço, virgem como eu, como tu.

Esta crónica irá entrar no Guinesse, já que, é a única no mundo que, de princípio até ao fim, não diz um foda-se, sequer. Isto é obra! Pois o respeito é bonito e eu gosto. Além de que, o director do jornal mandava-me já para o sindicato se acaso me pusesse aqui a disparar palavrões a torto e a direito. Também, porque tem de ser atenção às criancinhas, ter ética, disciplina, e não andar cá com palermices. Aliás, é por isso que o país não anda para a frente, muito devido a esses escritores de meia tigela que aproveitam o espaço de um jornal para mandar umas caralhadas, armados em entendidos, quando, no fundo, não percebem é um boi. Sou totalmente contra. Abnego qualquer tipo de discurso difamatório. Aliás, eu próprio seria o primeiro a atirar a primeira pedra. Sou dado ao respeito e, por questões que agora não interessam, jamais deixaria que as minhas filhas lessem uma coisa assim. Esta crónica sim, podem ler, pois toda ela é elegante, não de silhueta, mas na forma com que veste saia e não mostra o rabo. Por que tem educação, tem um pai que impõe regras duras, tem catequese de manhã à tarde e à noite. Que é isso, vagadundagem, não!, crónica minha jamais dormirá fora de casa. Nada de mensagens de telemóvel a partir das 21, ela é aqui, junto à televisão, a bordar, a fazeres os deveres e bolos de chocolate.

As minhas crónicas estão proibidas em sair com as crónicas do José torres que só falam em poligamias e stroganoff, gostam de pintar as unhas e têm a língua afiada para o que der e vier. O Zé que me desculpe mas, amigos amigos, crónicas à parte. As minhas crónicas nunca na vida irão alugar filmes de maiores de dezoito, nunca! Por que as minhas meninas crónicas, felizmente são de todas as mais bem-educadas, não andam no coro mas é como se andassem, não frequentam associações recreativas mas isso é por ordens minhas. Por ter estas crónicas assim, educativas, romanescas, estudadas, há gente que daria o cu por elas. Foi preciso muito para chegar a este ponto, tirar-lhe a pele e o caroço e só aproveitar o bom, portanto, despeço-me com um obrigado e até hoje a oito dias, isto é, se até lá não me apontarem uma crónica de 9 mm à cabeça.

terça-feira, 20 de julho de 2010

O poeta

Só de vê-lo dá dó, o Joselito, sessenta quilos de pura amargura, olhos desidratados que nem sequer dão para chorar uma puta de uma lágrima, uma postura que nem para cabide serve, ginga pelas ruas, vende poemas avulso e, da forma como está crítico o país, alguém quer lá saber de poemas para alguma coisa. Diz que está a mando de Deus, servir os homens com poesia que os farão calar e escutar a voz da voz do senhor. Os putos são ranhosos e atiram-lhe pedras à cabeça até haver uma que a vá rachar. Os senhores das boutiques correm-no dali para fora com um gesto hitleriano. Ele obedece e vai para outro lugar onde possa escrever e tentar vender um poema ou outro. Pelo que sei, a poucos dá a curiosidade de saber o que ele escreve num papel que encontrou no chão. O Joselito é uma paz de alma, come e bebe do que lhe dão, como se fosse um cão de rua a quem se lhe atira os ossos. Neste caso, para sobreviver, tem de ser mais rápido que os cães. E ir de focinho ao destino.
Conheci-o há dias e falei um pouco com ele sobre o dia-a-dia, sobre as suas palavras que, ainda que olhando para mim, ia escrevendo no papel tão magoado quanto ele.

- As pessoas são insensíveis, mano. Ninguém liga puto ao que escrevo
- É, mas tens de ter calma, as coisas boas virão ter contigo, mostra-me aí o que estás a escrever

O dia é uma arte em que ninguém pôs a mão
E a noite é o deus em que iremos desaguar, um dia

- Interessante, meio filosófico. Tens talento, pá!
- Ninguém quer saber de talento para nada, mano, as pessoas só querem é dinheiro para grandes comezainas e orgias com os seus próprios egos.

Falámos durante bons minutos e foi bom saber que ainda existe pessoas que falam das coisas com palavras que se entendam e que, mesmo do avesso, conseguem falar às direitas. Troquei o poema por dois cigarros. Ele preferiu assim. Fiz-me à vida antes que a vida se fizesse a mim, a procurar onde cair vivo, onde o silêncio faz falar. As contas são várias, como são várias as contas que tenho que dar para pagar as contas. Não adianta ser ladrão porque corro pouco e tenho as unhas dos pés encravadas. Deus não me apurou os sentidos. A helena aproveitou-se da minha fraqueza e está a apanhar sol nas Caraíbas com um badameco qualquer, a contar notas de cem e a descascar camarões, que é o que ela sabe melhor fazer. Sou, a bem dizer, um rouxinol sem canto. Os dias assim andam, nesta correnteza mal distribuída, uns têm tudo, outros têm todo o nada. Limpo umas chaminés em part-time e valha-me nosso senhor Jesus Cristo o quanto isso me ajuda para fazer andar a carroça e ter alguma coisita no prato.

Passeio no largo mas quem anda ao largo sou eu. Inventar os dias é muita areia para a minha camioneta. O país quer-nos pequeninos, caladinhos como um biscoito. De chaminés estou por aqui. Sonhar alto é uma ameaça, e já se sabe porquê. Não estou aqui para explicar nada. Aliás, nem sei se estou aqui ou na Noruega lá no meios dos bacalhaus a fazer discursos sobre os reis magos. Cansei de estar cansado e fui à procura imediata do Joselito numa de lhe pedir um poema de fé. Não o encontrei. Ao que parece sonhou com a sua morte e realizou-se. Fiquei tolo porque os sinos não avisaram nada. Mas também não admira, porque, aos pobres, atiram-se para a cova de qualquer maneira, e já está.

A rua já não é a mesma rua. É um lugar sem notícias, sem estômago para adorar. Sentei-me onde o Joselito se sentava e pus-me a escrever umas quaisquer memórias que me vinham à cabeça feitos espadachins. Alguém atirou uma moeda que no chão cantou. Ficou a rodar bastante tempo. A moeda reluzia, parecia de prata mas não era. Era uma moeda que alguém atirou em troca do que estava a escrever. O sol batia na cara do fulano. Ao início parecia um anjo medonho mas depois ficou mais nítido. Era o poeta.


- Então mano, por aqui?
- É verdade, a vida dá muitas voltas. Pensei que tinhas morrido, pois disseram.
- E morri. Agora sou adjunto de Deus.
- Não me faças rir, pá. E eu sou quem, a Gioconda?
- Não mano, tu és o próximo a ir. É que Deus está precisando de poetas lá em cima...

Levantei-me, e fui limpar chaminés.

sábado, 17 de julho de 2010

"é impossível ser feliz sozinho"

Todos temos um sonho, um motivo para sonhar, nem que seja do tamanho do mindinho. Sonhar faz bem à saúde e evita-se remédios. O médico aconselha-me e diz-me, está doente e não tem dinheirinho para remédios?, então vá sonhando! Toda a vida assim, a adiar a própria vida. Eu, por exemplo, sonho em ser burguês, receber o pequeno-almoço na caminha, servido por vinte e sete virgens. O difícil não é o pequeno-almoço na cama nem as vinte e sete mulheres. O difícil é apanhá-las virgens. No entanto, o sonho faz-nos correr, mas devagar, devagarinho, como se equilibrasse-mos o mundo redondo na cabeça. Por isso vou pelas ruas, como que procurando a minha vida dentro de uma garrafa de Coca-Cola, mas claro que preferia que fosse dentro de uma garrafa de aguardente. Pelo menos conserva melhor.

Todos cá no bairro sabem que a Rita trocou-me pela Ângela. Vivem as duas num apartamento em Azeitão, ao quilómetro catorze. Disse-me não haver espaço entre as duas, e eu que até sou magrinho como S. Tomé. Esta modernice trouxe-me pensamentos antigos. Vou na minha com o olhar sobre os pombos-correios, não os pombos que voam, mas aqueles gringos que traficam pó e estão sempre com muita pressa de ir a lado nenhum. Os pássaros deliciam-nos com os seus bailados e as árvores, ah, as árvores, matam-me a fome com as suas laranjas nunca sulfatadas. Há "canos" que não via a Roberta e vê-la agora ali, à janela, à fresca, os peitos empinados, lançando daqueles olhares de chantilly.

A Roberta tem como ganha-pão a reforma do marido que já morreu. Dizem que foi a fazer. Não sei, não vi, logo não posso dizer. Também dizem que o luto a converteu numa mulher frígida, negando todos os prazeres da carne. O que é pena, pois nesta hora estaria disposto a fazer-lhe esquecer o luto com uma ou duas brincadeiras daquelas que eu cá sei.

Só que a Roberta, apesar de ser boa comó milho, a todos dá para trás. Consegue fazer bem a gestão do luto e do prazer. Lembro que em puto havia muitos “pontas-de-lança” que gostariam de a ter comido. Chegou até ser o sonho de muitos e foi tema durante anos quando nós, putos em fase de descoberta, nos juntávamos no adro a contar experiências e a comparar tamanhos. O máximo que consegui foi pôr-lhe a mão no joelho esquerdo.
Mas só o Hilário é que a levou. Sim, o sarapintado, com aquele arzinho de pastel de nata e tal mas que dentro de um Porshe já se sabe que qualquer um faz proezas. Ainda assim, com o sol a meu favor, fui buscar um pouco de latinidade ao fundo do romantismo e mandei-lhe um daqueles assobios a imitar os passarinhos de água que se vendem nas feiras. Não sei como aconteceu mas aconteceu. O assobio fez-lhe despertar a atenção e, a Roberta, lá no recorte da sua janela, lançou sobre mim os seus olhos meios achinesados, causados pelo rímel. Acenou-me. Eu acenei-lhe. Lançou-me um beijo. Eu lancei-lhe dois. Ela sorriu. Eu exibi a cramalheira, todo o piano bocal.

Sem rezar muito, caminhei em direcção à porta de entrada que se encontrava aberta. Em cada passo ia-lhe despindo a roupa mentalmente, prognosticando o bom que é experimentar a qualidade das molas do colchão da cama dela. Espero que as histórias que ela contar sejam rápidas, já que, de cada história que ouvir, só quero retirar aquela página em que mete forrobodó, pensava eu feito manjerico.

Fui subindo os degraus em leveza de bailarino. O coração batia como se despertasse de um coma profunda. O meu olhar texano ganhava expressão qualitativa. Na sala notei que no interior da casa-de-banho havia uma certa agitação. A Roberta falou:

- Querido, aguarda aí dois minutos, estou a lavá-lo, bem lavadinho.

Querido?! Se bem me lembro, da última vez que me chamaram de querido foi um vaivém do caraças. Aguardei então os dois minutos, abrindo asas à imaginação, ou melhor, longas asas. Num olhar sobre a estante de livros apanhei lá pelo meio o do kamassutra e, aproveitando a espera, fui apurando o meu sentido técnico de algumas posições ginasticamente circenses.

Finalmente a Roberta, em robe branquinho como a neve, cabelos ao vento. Atrás dela, um caniche tão lavadinho que parecia que ia à televisão. Por momentos fiquei apático da cintura para baixo.

- Ó Bilinho, chamei-te aqui porque estou com um pé partido e não me convém andar (Olhei para o pé engessado e confirmei). Se fizesses a gentil gentileza em levar o meu Bolinhas a fazer necessidades aqui ao jardim em frente…

O meu silêncio foi um sim. E ela logo meteu a trela no cão e passou-ma. Tive uns pensamentos meios canibalescos mas passaram-me num speed. Desci à rua em direcção ao jardim. Acendi uma ponta de cigarro. Olhava o cão, todo perfumado, escovadinho, ar de quem não se preocupa com nadinha, pensando para comigo coisas infinitas e sem nexo. O cão a dar-me uma coça em felicidade. A Roberta à janela a arejar. Desta vez sorria mais para o estupor do cão do que para mim. Eu a sonhar coisas reais, a tentar entender como é que é possível alguém ser feliz sozinho.

Murmurei:
- Ó Bolinhas,  não me digas que és tu quem… (o cão ladrava fininho). Esquece, deixa para lá.