sábado, 17 de julho de 2010

"é impossível ser feliz sozinho"

Todos temos um sonho, um motivo para sonhar, nem que seja do tamanho do mindinho. Sonhar faz bem à saúde e evita-se remédios. O médico aconselha-me e diz-me, está doente e não tem dinheirinho para remédios?, então vá sonhando! Toda a vida assim, a adiar a própria vida. Eu, por exemplo, sonho em ser burguês, receber o pequeno-almoço na caminha, servido por vinte e sete virgens. O difícil não é o pequeno-almoço na cama nem as vinte e sete mulheres. O difícil é apanhá-las virgens. No entanto, o sonho faz-nos correr, mas devagar, devagarinho, como se equilibrasse-mos o mundo redondo na cabeça. Por isso vou pelas ruas, como que procurando a minha vida dentro de uma garrafa de Coca-Cola, mas claro que preferia que fosse dentro de uma garrafa de aguardente. Pelo menos conserva melhor.

Todos cá no bairro sabem que a Rita trocou-me pela Ângela. Vivem as duas num apartamento em Azeitão, ao quilómetro catorze. Disse-me não haver espaço entre as duas, e eu que até sou magrinho como S. Tomé. Esta modernice trouxe-me pensamentos antigos. Vou na minha com o olhar sobre os pombos-correios, não os pombos que voam, mas aqueles gringos que traficam pó e estão sempre com muita pressa de ir a lado nenhum. Os pássaros deliciam-nos com os seus bailados e as árvores, ah, as árvores, matam-me a fome com as suas laranjas nunca sulfatadas. Há "canos" que não via a Roberta e vê-la agora ali, à janela, à fresca, os peitos empinados, lançando daqueles olhares de chantilly.

A Roberta tem como ganha-pão a reforma do marido que já morreu. Dizem que foi a fazer. Não sei, não vi, logo não posso dizer. Também dizem que o luto a converteu numa mulher frígida, negando todos os prazeres da carne. O que é pena, pois nesta hora estaria disposto a fazer-lhe esquecer o luto com uma ou duas brincadeiras daquelas que eu cá sei.

Só que a Roberta, apesar de ser boa comó milho, a todos dá para trás. Consegue fazer bem a gestão do luto e do prazer. Lembro que em puto havia muitos “pontas-de-lança” que gostariam de a ter comido. Chegou até ser o sonho de muitos e foi tema durante anos quando nós, putos em fase de descoberta, nos juntávamos no adro a contar experiências e a comparar tamanhos. O máximo que consegui foi pôr-lhe a mão no joelho esquerdo.
Mas só o Hilário é que a levou. Sim, o sarapintado, com aquele arzinho de pastel de nata e tal mas que dentro de um Porshe já se sabe que qualquer um faz proezas. Ainda assim, com o sol a meu favor, fui buscar um pouco de latinidade ao fundo do romantismo e mandei-lhe um daqueles assobios a imitar os passarinhos de água que se vendem nas feiras. Não sei como aconteceu mas aconteceu. O assobio fez-lhe despertar a atenção e, a Roberta, lá no recorte da sua janela, lançou sobre mim os seus olhos meios achinesados, causados pelo rímel. Acenou-me. Eu acenei-lhe. Lançou-me um beijo. Eu lancei-lhe dois. Ela sorriu. Eu exibi a cramalheira, todo o piano bocal.

Sem rezar muito, caminhei em direcção à porta de entrada que se encontrava aberta. Em cada passo ia-lhe despindo a roupa mentalmente, prognosticando o bom que é experimentar a qualidade das molas do colchão da cama dela. Espero que as histórias que ela contar sejam rápidas, já que, de cada história que ouvir, só quero retirar aquela página em que mete forrobodó, pensava eu feito manjerico.

Fui subindo os degraus em leveza de bailarino. O coração batia como se despertasse de um coma profunda. O meu olhar texano ganhava expressão qualitativa. Na sala notei que no interior da casa-de-banho havia uma certa agitação. A Roberta falou:

- Querido, aguarda aí dois minutos, estou a lavá-lo, bem lavadinho.

Querido?! Se bem me lembro, da última vez que me chamaram de querido foi um vaivém do caraças. Aguardei então os dois minutos, abrindo asas à imaginação, ou melhor, longas asas. Num olhar sobre a estante de livros apanhei lá pelo meio o do kamassutra e, aproveitando a espera, fui apurando o meu sentido técnico de algumas posições ginasticamente circenses.

Finalmente a Roberta, em robe branquinho como a neve, cabelos ao vento. Atrás dela, um caniche tão lavadinho que parecia que ia à televisão. Por momentos fiquei apático da cintura para baixo.

- Ó Bilinho, chamei-te aqui porque estou com um pé partido e não me convém andar (Olhei para o pé engessado e confirmei). Se fizesses a gentil gentileza em levar o meu Bolinhas a fazer necessidades aqui ao jardim em frente…

O meu silêncio foi um sim. E ela logo meteu a trela no cão e passou-ma. Tive uns pensamentos meios canibalescos mas passaram-me num speed. Desci à rua em direcção ao jardim. Acendi uma ponta de cigarro. Olhava o cão, todo perfumado, escovadinho, ar de quem não se preocupa com nadinha, pensando para comigo coisas infinitas e sem nexo. O cão a dar-me uma coça em felicidade. A Roberta à janela a arejar. Desta vez sorria mais para o estupor do cão do que para mim. Eu a sonhar coisas reais, a tentar entender como é que é possível alguém ser feliz sozinho.

Murmurei:
- Ó Bolinhas,  não me digas que és tu quem… (o cão ladrava fininho). Esquece, deixa para lá.

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