terça-feira, 26 de julho de 2011

Jaime-Jaime


Quem ainda se lembra do Jaime-Jaime, lembra-se dos campeonatos de boxe ganhos, dos troféus erguidos em frente às televisões, dos avisos sucessivos que ele fazia aos seus adversários ameaçando que lhes partia a cana do nariz. Quem se lembra disto, lembra-se também do quanto era importante ser amigo dele, de ir a uma disco e ser ele quem estava à porta. 
O Jaime-Jaime, uma verdadeira força da natureza, a sua voz de trovão fazia estremecer os corpos e recuar os inimigos. A sua cara cheia de golpes era o seu cartão-de-visita. Olhá-lo de perto era já uma afronta. Mantinha respeito. Quando entrava no café, sabia-se o significado do seu silêncio. Só dava pela certa. E o certo é que ninguém se opunha. O Jaime-Jaime era um tipo à moda antiga, falava tosco, carregava um nadinha nos erres, mas ai daquele que fizesse troça. Os seus músculos pareciam de cimento armado. Apenas no amor é que a coisa não lhe corria por aí além, apesar de ter um coração mole para as raparigas. Os seus triunfos a este nível não lhe traziam grandes vantagens. Se com os homens era, repito, um autêntico feroz, com as mulheres, era um coninhas. Sim, porque elas metiam-lhe medo. Sempre que se aproximava de uma mulher, ainda que fosse para pedir lumes para um cigarro, envergonhava-se de tal forma que, para aumentar mais a esta sua pobreza, chegava até a libertar um xixi pelas perneiras abaixo. E lentamente foi tomado pelo desgosto por não haver uma, pelo menos uma que se pusesse debaixo dele sem ser por interesse, mas sim por amor. Agora só entre nós, dizem os da aldeia que este medo que o Jaime-Jaime tem das mulheres e que o faz fugir tal como um coelho foge do caçador, é por ter o “membro” pequeno. É verdade, sim senhor, quem diria que um todo musculado tivesse carne em falta lá pelo tomatal. Vai daí a sua vergonha. Depois, ó diacho, se isto vem a público, lá se vão os méritos todos do passado, e de feroz passa a ser conhecido pelo Pila-Curta, aquele que tem um lápis que só escreve a letras minúsculas. Anos se passaram e o Jaime-Jaime lá conseguiu arranjar uma a seu jeito, segundo ele, a flor mais virgem das redondezas, trabalhadeira e daquelas que se deita cedo. Uma mocinha de passado negro, infeliz, que mal se lembra dele começa a chorar. Que ninguém lho lembre. Começa a chorar. Dizem que foi por ter provado da erva do diabo. Ou da carne, não se sabe. É uma incógnita o seu choro. Felizmente os dias são os melhores lava-roupas que há por aí. Por outro lado, claro que o Jaime-Jaime sofria em segredo pelo tamanho pequeno do seu lápis que, de certo modo, não lhe dava possibilidades de escrever grande coisa. E havia noites que pedia ao santo milagreiro dos lápis para que, por obra e graça, lhe aumentasse o dito cujo.
Mas o Jaime-Jaime não desistiu, e foi de propósito ao estrangeiro resolver o assunto que tem, neste caso não tem, entre pernas, onde, por jeitos, há lá um médico especialista que faz uns excertos e implantes que são uma categoria. Durante uns meses por lá andou, no estrangeiro, entre consultas diárias, picadas no cu, tirar carne de um lado para pôr no outro, mais umas quantas recaídas, mais noites mal dormidas e por fim umas ligaduras em volta do novo membro descaradamente ampliado. 
O Zeca andava em pulgas para ver o resultado. No entanto, pelo tamanho do enchumaço, a coisa devia estar no ponto certo. Quando chegou o dia verdadeiro de todas as evidências, depois de desenroladas as ligaduras com cuidado analítico, eis o pirilau, um senhor pirilau, mas com uma contrapartida. Era negro, negro escuro como a puta que o pariu!, gritou o Jaime-Jaime furioso e raivoso ao ver o resultado. Teve de se conter com o que tinha e voltar para casa experimentar novas escrituras. Era uma questão de adaptação. 
A sua mulher estava avisada que uma surpresa se iria dar. Ao saber disto, despachou-se logo a perfumar-se, preparou uns licores afrodisíacos num copo só, e esperou deitada na cama, nua debaixo dos lençóis com uma ansiedade trepidante no coração. Apesar dos contras, o herói chegou triunfante, entrando no quarto como se entrasse num ringue. Era o Jaime-Jaime no seu melhor. Começaram com uns pequenos beijos, uns abanões de lado, até que chegou a altura de lhe atacar com a surpresa, o seu novíssimo exemplar XXL. A sua mulher, ao ver a ferramenta, primeiro emocionou-se, depois começou a chorar...


Mundo cão


Estou farto de artistas, poetas de tascos, pintores de rua, mais aqueles gajos estátua que ganham dinheiro sem mexer um corno. 
Detesto os deficientes com o toco da perna à mostra, todos doridos na voz, mais aqueles outros que vendem rifas para as associações de bêbados anónimos e viciados em metadonas. 
Estou farto dos hippies a fazerem pulseirinhas com os nomes das pessoas, dos engraxadores de sapatos que gostam de ouvir piadas secas. Também os fackirs a engolirem um conjunto inteiro de talheres, mais as mulheres que passeiam, dando mostras que não precisam dos homens por saberem diante mão que têm os dedinhos para amar. Sim, todos estes tipos que enchem as ruas e não deixam um metro quadrado sequer para eu vender um par de óculos, que por azar, tenho o fornecedor, que é chinês, à perna para lhe pagar.

O negócio está de rastos e leva-me também nesse arrastão. Ninguém confia em ninguém. Eu próprio tenho vezes que não confio em mim. O problema é que as pessoas que passeiam pelo centro da cidade gostam mais de apreciar os artistas. Estes sim, dão cabo do negócio, e só têm de fazer umas habilidadezinhas para impressionar o freguês. Outro dia chegou mais um caricaturista. Pela pinta, nota-se que sabe-a toda. Em duas horas encheu os bolsos de dinheiro, a desfigurar o rosto das pessoas com um lápis em punho num papel branco que depois elas levam-no enroladinho para mais tarde encaixilharem e babarem-se perante os amigos. E eu ali, com uma centena de óculos de sol estendidos ordenadamente sobre um pano para vender, e ninguém se chega à beira. Lerpo sempre. Com estas e com outras a Lice tem-me dado cabo dos neurónios e, nas entrelinhas, vai-me dizendo, não há dinheirinho, não há colinho! Já pensei em despachá-la ou pô-la a render, mas admito que tenho um fraquinho por ela. A cada dia começo a odiar o mundo, a deitar fogo em cada coisa com os olhos. Sem salário fixo estou empenhado até aos ossos. Não sei como, nem quando, nem onde, nem porquê, nem porque, nem o cacete a quatro. Todos os dias são recheados de metafísicas que me colocam foram dos eixos normais. É um sei lá bem o meu futuro. Assim como o da Lice, que aproveita a água suja para dar de beber às galinhas. No entanto, a cada manhã tenho de enfrentar a vida. E lá vou eu para o largo do Senhor da Cruz, apoiado numa crença que desconheço nem faço contas em conhecer tão cedo.
Como em todas as manhãs, os artistas começam a chegar um por um, até formarem uma cambada e tomarem conta da atenção das pessoas lá com os seus malabarismos de meia tigela. Pelo menos o fackir adoeceu. Parece que engoliu uma espinha. O que é um contra senso. Mas é bem-feita. O cigano que vende prata por ouro também não veio, provavelmente foi dentro. É bem-feita também. Só as romenas, sujas e porcas é que se plantam à porta da igreja, e o gajo das taludas mete-se com todos. 
Depois há o malotinha do cego, que me cansa com a sua concertina e vozinha deslavada. Sem falar no cão, que controla tudo e todos com aquele ar à chefe de família. Penso: mas será que neste largo não existe gente decente? O deficiente lá veio, a caminhar com a sua prótese metida. Senta-se, tira a prótese, expõe o toquinho da perna e coloca a voz em tom de lamúria. O certo é que consegue um bom dinheiro. Enquanto eu, nada vezes nada. E penso na Lice que deve estar em casa a desesperar que eu ganhe algum e com esse algum passe no talho para comprar uns fígados de porco para haver jantar. Não adianta destruir o mundo se com ele vamos também. Ao olhar os cravas, confirmo que a vida é um pão-de-ló que se desfaz na boca. A minha Lice disse que vinha, e veio. Farta-me de me dizer que quer um pilas para criar, mas eu digo-lhe, estás a ver estas minhas duas mãos vazias? Ela não quer saber senão do dinheirinho para haver uma justificativa da existência do frigorífico. Ela sabe da concorrência, destes pedinchões que se metem a roubar os fregueses. O aleijado safa-se, como sempre. Tem bons motivos: meia perna decepada, e um Deus vos abençoe na ponta da língua. Apetece decepar-lhe a outra perna, por tanta dor fingida. A Lice repara em todo o cenário, na cambada que se junta para fazer nenhum, só à cata de beneficência. Não tira os olhos do perneta que, de quando em quando, as moedas caem no cestinho. Ainda por cima, sem impostos. Reparo na Lice. Nunca a vira pensativa. Mas eu sou eu, e a Lice continua a sonhar igual a um touro no meio da arena. Toquei-lhe com o braço, e perguntei-lhe: há azar? Escutou-se um clique. Ah, desculpa, estava a olhar o perneta…olha só como ele ganha muito dinheiro… - Respondeu a Lice, enquanto vampiricamente e com cifrões nas íris olhava as minhas duas lindas pernas…

A minha Maria


Amigos, depois de escrever esta crónica vou directamente para a caminha onde tenho a minha Maria a aquecer os lençóis. Sinceramente, só de pensar que tenho a minha Maria prontinha para as minhas imaginações, está-me a custar no pêlo cada palavra que escrevo, pois cada palavra que aqui escrevo faz-me demorar e, se acaso demorar mais que uma cafeteira ao lume, a minha Maria adormece e não há nada para ninguém. 
Portanto, vou tentar ser breve ao máximo, consciente que compreendereis que a minha imaginação para escrever está nas lonas, fechada para obras, ou, para ser mais preciso, a minha escrita está como de um velho oitenta anos quando fala sobre sexualidade: fala, fala, mas não diz nada.
Amigos, não se admirem se me ausentar desta crónica repentinamente ou se vos deixar aqui pendurados num verso qualquer, onde as reticências farão o melhor que sei. Prometo, no entanto, que na próxima farei o meu melhor, já que, o pior é isto que aqui vêem: uma crónica sem sentido, despudorada, insignificante, palavras sobre um papel tal como uma planta sem terra. Estou aqui mas estou a pensar na minha Maria, que tanto sentido dá à minha vida, volta e meia dá-me a volta ao corpo na cama para ficar por cima, com a sua mão na minha a indicar-me o caminho da felicidade.

Hoje sim, era um daqueles dias que podia falar de futebol, mas oh meus amigos, eu de bolas só percebo de bolas de queijo, e nada mais! E quando a literatura se acaba, fica o desejo a meia haste. No fundo estou aqui a escrever por causa dos cinquenta euros que o jornal me dá e que muita falta me fazem para o que agora não me lembro, ou não quero recordar.
Tenho essa liberdade, de escrever não escrevendo. Fazer de conta que. E tenho amigos que admiram esta minha farsa, por ser dócil e não ter más influências. Dizia, daqui vou directo e literalmente para o colinho da minha Maria. 
Não para lhe catar piolhos ou fazer cóceguinhas nos pés, mas sim para lhe mostrar a luz viva dos meus olhos por debaixo dos lençóis. Se esta noite morrer, já sabeis do que foi: afogado em mim. A minha Maria é igual à Maria de todos os homens. Gosta de jantares românticos em que sejamos nós apagar a conta. Usa tacão alto para mostrar que está crescida. Bebe champanhe em pequenos goles porque a velocidade é inimigo do estômago e do dinheiro. Tenho feito muitos jantares românticos com algumas Marias deste país. E isso tem-me levado a ligar ao director deste jornal para que me adiante algum guito em troco de umas boas crónicas prometidas.

A minha Maria - que não é santa mas cura-me - está ali na porta ao lado, com certeza nua, a desejar que termine esta prosa para lhe dedicar outro tipo de versos, escritos à língua. Pudesse eu abreviar este texto numa só palavra e lucrar tanto como se escrevesse em todos os Homens. Podia ser a palavra amor, sexo ou pátria, tanto faz. O problema é o director do jornal, esse gigante atraente, que só me dá os cinquenta euros quando concluir este texto.
Para mal de mim, na redacção estão a exigir muito, pedem-me que meta sangue nas palavras, rodízios de amor, triangulações de amor. Para bem de mim, os cinquenta euros fazem-me cá um jeitaço danado, dá para ressuscitar pela milésima vez.

E depois a minha Maria que não é Maria que vai com as outras, está ali deitada, a sonhar com hortelãs, a adocicar a pele para que a minha boca fique doce também. Espera-me assim, com os desejos todos reunidos ao centro, a torcer-se para ambos os lados. Bem, tenho de ir. Lamento não ter escrito todos os pormenores de uma vida, mas ainda assim gostaria de sair de cabeça erguida, a haver aqui pelo menos um verso que sirva para letrinha de canção, um sonhar, um pouco de tinta fresca para pintar o tempo. Mas por favor, depois deste texto não me atirem à cara a fraqueza aqui descrita, nem façam troça da minha Maria que, coitada, também ela precisa dos cinquenta euros para se governar. Não é muito nem é pouco. São cinquenta euros a abrir um sorriso. É o preço que a minha Maria leva para que possa dizer que ela é minha e eu sou dela. Pelo menos esta vez, esta noite, porque amanhã é outro dia e eu, cronista insaciável, tenho de ir varrer estradas pelo dia fora. E quando chegar a noite, por esta mesma hora, escreverei à minha Manuela, à Paula, à Teresa, ou então à minha Joaninha do quarteirão mais abaixo, que todas me amam e me querem, pelo módico preço de uma crónica. Não é muito nem é pouco. São cinquenta euros, e é tudo o que peço, para ser feliz por mais ou menos três quartos de hora.