terça-feira, 26 de julho de 2011

Mundo cão


Estou farto de artistas, poetas de tascos, pintores de rua, mais aqueles gajos estátua que ganham dinheiro sem mexer um corno. 
Detesto os deficientes com o toco da perna à mostra, todos doridos na voz, mais aqueles outros que vendem rifas para as associações de bêbados anónimos e viciados em metadonas. 
Estou farto dos hippies a fazerem pulseirinhas com os nomes das pessoas, dos engraxadores de sapatos que gostam de ouvir piadas secas. Também os fackirs a engolirem um conjunto inteiro de talheres, mais as mulheres que passeiam, dando mostras que não precisam dos homens por saberem diante mão que têm os dedinhos para amar. Sim, todos estes tipos que enchem as ruas e não deixam um metro quadrado sequer para eu vender um par de óculos, que por azar, tenho o fornecedor, que é chinês, à perna para lhe pagar.

O negócio está de rastos e leva-me também nesse arrastão. Ninguém confia em ninguém. Eu próprio tenho vezes que não confio em mim. O problema é que as pessoas que passeiam pelo centro da cidade gostam mais de apreciar os artistas. Estes sim, dão cabo do negócio, e só têm de fazer umas habilidadezinhas para impressionar o freguês. Outro dia chegou mais um caricaturista. Pela pinta, nota-se que sabe-a toda. Em duas horas encheu os bolsos de dinheiro, a desfigurar o rosto das pessoas com um lápis em punho num papel branco que depois elas levam-no enroladinho para mais tarde encaixilharem e babarem-se perante os amigos. E eu ali, com uma centena de óculos de sol estendidos ordenadamente sobre um pano para vender, e ninguém se chega à beira. Lerpo sempre. Com estas e com outras a Lice tem-me dado cabo dos neurónios e, nas entrelinhas, vai-me dizendo, não há dinheirinho, não há colinho! Já pensei em despachá-la ou pô-la a render, mas admito que tenho um fraquinho por ela. A cada dia começo a odiar o mundo, a deitar fogo em cada coisa com os olhos. Sem salário fixo estou empenhado até aos ossos. Não sei como, nem quando, nem onde, nem porquê, nem porque, nem o cacete a quatro. Todos os dias são recheados de metafísicas que me colocam foram dos eixos normais. É um sei lá bem o meu futuro. Assim como o da Lice, que aproveita a água suja para dar de beber às galinhas. No entanto, a cada manhã tenho de enfrentar a vida. E lá vou eu para o largo do Senhor da Cruz, apoiado numa crença que desconheço nem faço contas em conhecer tão cedo.
Como em todas as manhãs, os artistas começam a chegar um por um, até formarem uma cambada e tomarem conta da atenção das pessoas lá com os seus malabarismos de meia tigela. Pelo menos o fackir adoeceu. Parece que engoliu uma espinha. O que é um contra senso. Mas é bem-feita. O cigano que vende prata por ouro também não veio, provavelmente foi dentro. É bem-feita também. Só as romenas, sujas e porcas é que se plantam à porta da igreja, e o gajo das taludas mete-se com todos. 
Depois há o malotinha do cego, que me cansa com a sua concertina e vozinha deslavada. Sem falar no cão, que controla tudo e todos com aquele ar à chefe de família. Penso: mas será que neste largo não existe gente decente? O deficiente lá veio, a caminhar com a sua prótese metida. Senta-se, tira a prótese, expõe o toquinho da perna e coloca a voz em tom de lamúria. O certo é que consegue um bom dinheiro. Enquanto eu, nada vezes nada. E penso na Lice que deve estar em casa a desesperar que eu ganhe algum e com esse algum passe no talho para comprar uns fígados de porco para haver jantar. Não adianta destruir o mundo se com ele vamos também. Ao olhar os cravas, confirmo que a vida é um pão-de-ló que se desfaz na boca. A minha Lice disse que vinha, e veio. Farta-me de me dizer que quer um pilas para criar, mas eu digo-lhe, estás a ver estas minhas duas mãos vazias? Ela não quer saber senão do dinheirinho para haver uma justificativa da existência do frigorífico. Ela sabe da concorrência, destes pedinchões que se metem a roubar os fregueses. O aleijado safa-se, como sempre. Tem bons motivos: meia perna decepada, e um Deus vos abençoe na ponta da língua. Apetece decepar-lhe a outra perna, por tanta dor fingida. A Lice repara em todo o cenário, na cambada que se junta para fazer nenhum, só à cata de beneficência. Não tira os olhos do perneta que, de quando em quando, as moedas caem no cestinho. Ainda por cima, sem impostos. Reparo na Lice. Nunca a vira pensativa. Mas eu sou eu, e a Lice continua a sonhar igual a um touro no meio da arena. Toquei-lhe com o braço, e perguntei-lhe: há azar? Escutou-se um clique. Ah, desculpa, estava a olhar o perneta…olha só como ele ganha muito dinheiro… - Respondeu a Lice, enquanto vampiricamente e com cifrões nas íris olhava as minhas duas lindas pernas…

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