segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Comissões

Foi num dia em que, se não fosse o final da história, teria sido especial. Nunca fui de muitas sortes nem tão pouco de tantos azares. A vida corre sempre igual e eu já me habituei a que assim seja. Um passo para aqui e dois para acolá. 
Era uma manhã com um nevoeiro um pouco menos que cerrado, a minha cara meia estremunhada pela noite mal dormida, as minhas pernas acusavam inícios de cansaço causados pela...bem, acho melhor não dizer. Seguia eu pela avenida fora. Seguia o caminho dos que passam o tempo a preocupar-se com a posição do sol para não chatear muito o corpo mal habituado.
Ao longe, vejo uma rapariga bem esticadinha, pescoço nu, blusa com dois ou três botões desapertados, com um ar estudantil, de quem quer aprender algo mais do que os livros da escola. À medida que me aproximava, a sua beleza chamava-me. Ou parecia que me chamava. Há dias em que as miragens me parecem verdadeiras. Mas, mantenho sempre a dúvida como hipótese. De facto não, ela acenava para mim. Como pode?! A chamar por mim! E eu que pouco tenho dado à sociedade, que nunca me livrei de relatos mal contados sobre a minha pessoa relacionados com zaragatas e empréstimos pontuais! Não pode ser!, pensava eu com os meus botões de metal ferrugento! No entanto, a uma boa dúzia de metros, a minha certeza estava certa, como quem diz: a rapariga está mesmo a chamar por mim. Ui! Que terei de especial nesta manhã?! Exclamava eu baixinho, como se tivesse um grilo dentro do bolso do meu casaco a quem dar de comer! De facto sim, ela esperava que eu me chegasse bem perto dela. Porventura está perdida aqui nesta ciadade ou quererá uma informação sobre que direcção há-de tomar para ir para a outra ponta da cidade. Ou não. Ou, talvez, hum, sabe o que quero dizer, não sabe? Uma miúda, cheia de entusiasmo, com vinte e poucos aninhos a subir-lhe pelos cabelos, por enquanto lisos, andar desinibido, sem pai, talvez, sozinha neste mundo, sem voz amiga para lhe elogiar o peito crescido. Pensava eu na minha moral de simplório vivant. Já tinha ouvido falar por amigos meus que tais situações acontecem. Pelo menos uma vez na vida. E, sortes assim, há que aproveitar! Outra coisa, prostituta não era, porque essas, dormem até mais tarde.
Endireitei os colarinhos duma camisa que me custou um quinto do salário, dei um jeito ao casaco que me fora oferecido no Natal de 2003, olhei os sapatos e vi que estavam em condições, respirei fundo e, finalmente, cheguei perto dela, com o meu ar característico de sonhador nato. Tão perto que, se viesse mais um pouco de vento pelas minhas costas era capaz de a beijar mesmo ali. Ela olhou-me com encanto tal que, mais um poucochinho a fixar-lhe os olhos, ficaria tal serpente encantada. Nunca me acontecera um cenário daqueles. Aliás, nem me vou adiantar mais com pormenores e vou passar à conversa propriamente dita. Então foi assim. Soltou um olá com todas as letrinhas, a sua boca abriu-se em câmera lenta e eu, ex-caçador de ostras, respondi-lhe em igual teor sentimental. Começou por me falar das sucessivas greves do país, o que estranhei, mas, ainda assim, acompanhei-lhe o raciocínio. Inteligente que a miúda era!, intuí, no meu passo doble mental esperando que a cartada do convite para ir a casa dela acontecesse nos entretantos.
Depois, cravou-me um cigarro, eu dei-lhe e pensei "isto está correr bem!". Falou-me de outras coisas que eu, sinceramente, não fiz caso, uma vez que a minha atenção estava compenetrada no seu colar com uma pedra reluzente e achatada que, com certeza, lhe esfriava o peito. A minha imaginação atingia assim os trópicos e sub-trópicos. Os minutos esvoaçaram. O nevoeiro sumiu-se num clique. Pessoas passavam bem perto de nós e eu, nem xi nem mi. O destino tem destas coisas e eu já merecia isto há muito! Ao fim de um breve questionário sobre o que faço e o que não faço, eis que chega o momento. A miúda convidou-me a entrar numa porta mesmo ali ao lado. E eu, como sou de raça pura, aceitei, sem meio mas. Ela foi na frente, e eu, numa legítima marotice, tentava despi-la mentalmente. Pudera!, aquele pedaço havia de dar para muitas refeições! Depois de ter entrado por uma porta que se encontrava aberta, chiça!, deu-se o pior do acto da cena. Saiu de uma outra porta um fulano bem engelado, que eu esperava bem que não fosse nem pai nem tio dela, estendendo-me a mão com um sorriso de criar vítimas a sério. Mandou-me sentar e eu sentei. Mandou-me pôr vontade e eu pus-me. Depois de ter mexido nuns papeis que tinha em cima da secretária, assinando outros que estavam agrafados, voltou-se para mim e disse:
- Então o senhor quer fazer-se sócio de uma comissão de trabalhadores?! São só quinze euros!
Ups! Ouvido isto, fiquei emudecido por uma longa fracção de segundos. Olhei bem o interior da casa, avaliei a situação da porta que, miraculosamente, se fechara num abacadabra, avistei a cidade pela janela e, já a miúda estava lá em baixo na rua dar boas vistas a outros tipos distraídos como eu. O que me valeu foram os quinze euros que havia pedido emprestado ao tipo que me traz o correio a casa. Que se dane!, quinze euros era capaz de não chegar para os curativos! Melhor assim. Posso até não contribuir para a produção nacional, mas pelo menos ninguém me pode dizer que não zelo pelos trabalhadores!

sábado, 19 de dezembro de 2009

s'eu fosse deus por meia horita...

Se Deus fosse uma mulher, o céu, nesta época natalícia, estaria cheio de luzinhas e fitinhas coloridas e chocolatinhos engalhados nas nuvens. Mas Deus é do sexo masculino e gosta das coisas rudes.

Foi Deus quem criou o mundo, e quem criou Deus? Bem, aviso já, eu não fui, aliás, nem sei se talento teria para tanto, além de que tenho a vida muito ocupada e não teria tempo sequer para engendrar tal preciosidade. Não duvidemos da Sua existência, nem da minha, nem da que vai vir a seguir.

Todas as existências são dignas de ser rotuladas. A mim, por exemplo, já me chamaram de tudo, menos de Deus. Ainda bem, porque desse modo teria uma carga imensa nas costas.

Não me imagino trabalhar 24 horas diárias, sem vencimento, sem intervalo para fumar um Ventil, ter que ajudar o próximo quando ele está muito longe, avaliar dossiers de pecados e decidir qual sentença a dar, lançar raios lá de cima para assustar os automobilistas que vão acelerados. Ter que ter um dia por semana para falarem de mim sem consentimento.

Portanto, eu não daria um bom Deus, a preguiça mata-me aos poucos e, inclusive, o médico disse-me que isso não se trata com aguardente.
Mas eu insisto, e tenho fé que os bagaços me lavem a alma de certas e determinadas feridas que surgem do nada, e que categoricamente se alojaram algures na minha medulazinha. Só o bruxo é que anda lá perto de me dizer a verdade, mas esse, pede-me um dinheirão pela consulta. Portanto, quando passo à sua porta, acelero o passo, em estilo rock n’roll.

Depois, porque, quando não há culpados no meio de uma cena, Deus passa a ser o presumível autor de todas as culpas. Quem foi que fez este trabalhinho sujo? Quem mandou este tsunami? Alguém diz: foi Deus! Quem pegou no dinheiro dos contribuintes? Foi Ele!
Vedes como tenho razão. Nos dias que correm ser Deus é uma tarefa que nos pode custar meia dúzia de depressões malignas. Só alguém com muita capacidade mesmo, e possuindo estofo para aturar as manias dos homens, consegue dar despacho à coisa.

Eu não estou para isso. Talvez daqui a vinte ou trinta anos, quem sabe, se o lugar estiver vago, até que me posso candidatar ao trono, mas até lá vou me envolvendo em aventuras e desventuras, com esta e com aquela, um misto de prosa com poesia, com contas a pagar e contas a receber.

Definitivamente, ser Deus traz poucas recompensas. Primeiro, não se tem acesso a entrar numa discoteca, a não ser que se barbeie. Segundo, sabe lá Ele distinguir um arroz de pato de um arroz de cabidela. Certamente come tudo sem paladar. Mas, esperem lá! Ah, se eu fosse Deus por meia horita, juro que o F.C. Porto havia de ficar vinte anos sem ganhar nadinha, para ver o que é bom para a tosse. Desviava todas as bolas que fossem à baliza do Benfica. Estou farto de levar tanga!

Depois, engendrava uma diarreia nacional para todos os políticos deste país, era assim que os veríamos com olhinhos de calamidade. Ehehe, e rir-me-ia também ao ver os lutadores de boxe aos abraços e beijinhos. Ora bem, vistas bem as coisas, até que seria divertido estar no papel de Deus. Basta um pouco de imaginação e o que não falta é bons momentos para se distrair.

Imagino assim de repente, com aquela capacidade de omnipresença, espreitar as contas do país e ver quem tirou mais. Olhar a cara de um, que nos parecia dos nossos, e espantar: também tu!
Ou então, assistir aqueles diálogos entre árbitros de futebol e presidentes de clube. Até que seria divertido ver alguém a assinar um cheque e a perguntar: por quanto é que fica um 2 a 0? E espetar um caguefe ao Bin Laden? E achar a Madelleine e ficar com o dinheiro da recompensa? E proibir que as mulheres se vistam?

Mas como isso não é possível, limito-me a ser eu, euzinho da silva, a comer gato por lebre, até que um dia chova no meu quintal notas de 500 euros. Meia horinha só. Não peço mais. Acha que é pedir muito? Então, bora lá rezar com força.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

cheguei; e o mundo de repente se fechou