sexta-feira, 25 de junho de 2010

história mal contada

Aquele que tira proveito do azar é um sortudo. A bem dizer é um filho da mãe com probabilidades de um dia se tornar santo. Não sei de mim às sextas-feiras à noite. Há quem me veja a beijar o gargalo de uma garrafa de gim, outros apontam-me como uma miragem. O certo é que estou liso e os juros a cada dia ganham mais erecção. Neste país, quem dá um peido sem justa causa, apanha no mínimo dez anos de cadeia. Havia de haver um livro de reclamações quando o sistema nos toma. Somos um pouco tímidos a pensar na palavra liberdade. Os dias são contados com uma máquina de contar notas. A justiça tem miopia. O país tem o fígado lixado. O sonho é onde me ponho a jogar bilhar numa mesa sem buracos. Sou ateu às segundas-feiras e pedagogo às terças. Às quartas ponho-me à distância, às quintas é só para contar aos amigos, às sextas já falei e aos sábados… bem, aos sábados, é dia de ressuscitar.

*


Liguei para a Naida, filha de um bacalhoeiro que em tempos tive uma relação descomprometida, sem grandes quimeras, para que amanhã traga os fios e pulseiras de couro à qual tem uma habilidade única. Aliás, a Naida, onde põe as mãos, faz obra. Mas em tudo!

- Aparece amanhã no largo. Vai haver muito otário. Anda que eu ponho as bejecas.

Não a percebi muito contente pois apenas respondeu, hum hum. O que é de estranhar visto que a Naida, além de ser toda para a frentex, é despachada na língua. Aliás, que me lembra, em vários sentidos.

Apesar de tudo, na manhã seguinte lá apareceu, com a sensação que anda movida a remédios multicores mas lá apareceu, com a sua bijutaria feita na paciência do lar, a três pancadas mas de grande valor artístico, afim de, quiçá, ganharmos uns cobres e tirarmos a barriga de misérias com uns enlatados. Tentei animá-la contando umas piadas sobre padres mas nem assim.
A Naida estava num precipício à qual eu, pelos vistos, não podia dar a mão. Só à custa de dez cigarros, 40 minutos depois, após montada a banquinha com os artefactos de pulseiras, brincos, piercings, colares, é que falou: - O meu velho, pá, apetecia-me matar o meu velho!

Depois foi um desfile de palavrões e de sentimentos altos. Da sua voz, além de raiva, salivava bastante. Por isso dá para entender o tamanho da desconsolação.
Pelo que entendi, o velho andava-lhe a foder a vida, a obrigá-la a vender-se por vinte paus para matar a sede de vinho. Punha-a numa recta de uma estrada secundária até que chegassem clientes, e depois o dinheiro, era, bota para cá!

- Naida, deixa, que se apanho esse cabrão dou-lhe uma puta de uma coça que ele nem vai saber de que terra é!

A Naida lá fez um sorriso pela minha participação no seu descontentamento. Inclusive, disse-me que eu era um gajo porreiro. Que ainda havíamos de ser felizes lado a lado. Por obra da nossa cumplicidade, nesse dia o negócio corria cinco estrelas, os nossos ânimos aqueciam quer com olhares quer com um pouco de vinho de porto. O sol só a nós pertencia. É bom viver ao pé de mar e fazer-lhe cócegas na areia, pensava eu na minha. Ter um destino de fundo azul com umas nuances esbranquiçadas.

Sentado, à velho cigano, observava a Naida, e imaginava-nos aos dois com uma porrada de filhos, a puxar-nos para o pátio, para o baloiço que prometi mas que não me lembrava. Ah, o sonho de haver sonhos. A música do Bob Marley a fazer dançar o milho. E a Naida, enquanto entrelaçava três tiras de couro para fazer uma pulseira, sem nada saber destes pensamentos, a sorrir para mim. Como a dizer sim.

Nesse dia fizemos uma pipa de massa. Ela estava inspirada e de vez em quando soltava uns pregões que, embora fossem meios alucinados, faziam o mesmo efeito de chamariz. Só um inglês levou duas pulseiras e cinco anéis góticos e pagou com uma nota tão grande que me senti pequeno. Acarinhei a nota. Pois era a primeira vez que uma daquelas me passara pelas mãos. Estou mais habituado a chapas.

A cena do velho dela não me saía da cabeça. A minha vontade era de, enfim. Apenas espero que o destino lhe faça estourar os tomates e os miolos. A ele e a gente como ele.
Mas o dia não acabou assim. Deus não sabe fazer contas de cabeça.
Na hora em que arrumávamos as trouxas, o velho dela, como um cacho, a pedir explicações à filha do porquê não estar em casa a fazer a janta, e ainda por cima a insultá-la de cima a baixo.

O tempo parou e, numa fé resvalada, a Naida bateu o pé, respondendo-lhe com a mesma moeda, filho da puta, ordinário, chulo, vai-te embora, pá! O velho estava convencido que o mundo apenas a ele pertencia, e avançou para tentar algo, numa de puxar os colarinhos à paternidade. Aí, xau, como se diz lá na minha terra, foi como quem me acorda com um balde de água fria. Entrei em cena e, num soco só, estendi-o no chão feito cão a esguichar sangue pelo focinho. Bastou um soco bem dado para o velho ficar enroscado em si mesmo e a dizer mal da sua vida.

A Naida aproveitou e cuspiu-lhe em cima com uma vontade que só vista.
Pessoas vinham-se aproximando e foi uma confusão dos diabos. Parecia que a maré ia subir em segundos.
Não sei quantos minutos depois, do nada, apareceram dois bófias à paisana que, sem mas nem meio mas, puseram-me as mãos atrás das costas, algemaram-nas e, com uma fusca apontada à minha cabeça, disseram, anda que destas já não te livras.

Sei que virei-me para a Naida aos gritos: - Faz qualquer coisa, Naida, diz o que esse velho te anda a fazer, diz, Naida!

Mas a Naida estava em choque, a chorar acriançadamente. Seguramente a ganhar coragem para intervir e apontar o dedo ao real bandalho que, na sua manha de velho sabido, chamava-me de comunista, cão, merdento, para se fazer de vítima e sensibilizar os de fora.

Os bófias corpulentos não tiveram fé em porra nenhuma e, à força da força, tentavam enfiar-me para dentro do carro patrulha a todo o custo. Desse por onde desse. E eu a dar luta.

Nesse instante o sol queimava-me as vistas, os sons da multidão que assistia ao aparato estavam dentro da minha cabeça em ecos contínuos, mas a distanciarem-se.
Eu continuava a pontapear o ar, a espumar ligeiramente para a camisola, de costelas magoadas, anestesiado na alma mas ainda assim sentindo que alguém me tocou de leve no cabelo, com um carinho inexplicável. Era a Naida. Sorri. Pois só ela me podia safar e contar tudo à polícia sobre quem é afinal o mau da fita, antes que o caso virasse para tribunal, já que, é sabido que por lá andam uns magistrados mortinhos por dar cabo dos inocentes, com vontade de enrabá-los a sangue frio, para que estes tomem o lugar dos filhinhos do papá que andam para aí a cheirar.

O carro da polícia estava pronto para arrancar, eu sentado no banco de trás, curvado para a frente, respirando forte e com um fio de saliva a sair do canto da boca a denunciar cansaço, quando, a Naida, pálida como tudo, aproximou-se da porta que tinha o vidro meio aberto e, em palavras a perderem a vida, disse-me assim:

- É meu pai, Silver, entende, é meu pai…é meu pai…





terça-feira, 22 de junho de 2010

Jesus vive em mim

A vida muda e, contra o tempo, não há ciência que nos valha.
Temos a cabeça cheia de merdas e, tal com um disco rígido de um computador, é preciso esvaziar. A velhice não é assim tão distante. Quando damos por ela, somos convidados a enfiar-nos dentro de um caixão. Por saber disto, só tenho objectivo em satisfazer-me. E ler. Verdadeiramente não sabemos o que cá fazemos. Andamos práqui a estudar ciências e comportamentos que nos atrasam mais o divertimento. Sorrir é melhor que uma sande de bacon. Gosto de paixões à primeira vista. Sinto que é das coisas mais verdadeiras que anda por aí. Depois tudo se acaba com insultos, mas isso é outra história. Afinal de contas, somos animais insatisfeitos. Gostamos de bons cérebros, pessoas que pensem bastante, mas no fundo gostamos mais é de um bom par de mamas. Gosto de assistir a grandes exibições pornográficas. Faz-me sentir vivo. Não existe presente, tudo é passado, mesmo o pensamento, pois actualiza-se a cada instante. Deixei de ser burro e despedi a Suzzi de casa. Disse-lhe que era por falta de complementaridade. Ela não percebeu. Só percebeu quando falei grosso à vocalista de Death Metal. Estava farto de trabalhar para ela, de ser escravizado até à medula, a mantê-la, a ela e às suas manhas e manhosices a troco de umas quecas superficiais. Esgotou-se-me o bom senso e dei a vez a um tipo duro, a centímetros da explosão. Fiz um contrato com a solidão por ano e meio e andei assim, só e destemido, na procura do meu âmago. Aproveitei esse espaço de ausência de um deus para escrever o meu próximo livro dedicado à quadratura do amor. De uma mulher envolvida em pecados amorosos com poetas. Foram trezentas páginas a imaginar fetiches e diversas formas de amar. Dei o litro pelo não litro. No percurso dos dias ganhei cinquenta e sete depressões mas no fim de tudo saí ileso que nem um ratinho.
Hoje estou livre para amar, mas falta-me aquele movimento rápido de cabeça para ver quem passa pelos meus olhos.

Liguei para a Guida, uma cinquentona, de banhas transbordantes mas com bom presunto que tira qualquer um do sério, pelo que, para amá-la, é necessário fazer um seguro de ossos. Da última vez, vim de casa dela com a espinha num oito e agradecendo a deus não ter aparecido o jamaicano que com ela tinha ou tem uns lances furtivos. Um tipo bem abonado, karateca e motorista de traillers internacionais. Já estão a imaginar.

Ainda assim arrisquei e fomos tomar qualquer coisa à baixa. Falei-lhe do livro e, ao saber do tema, deu um sorriso convidativo que, diga-se de passagem, deu-me novas inspirações. Palavra puxa palavra, cerveja puxa cerveja, hora e meia depois, estávamos meios pifos, a trengar como pardais ao ninho. A Guida fala muito alto e o seu discurso é pouco bíblico. Falou-me das suas relações frustradas, das nódoas sentimentais, da cabeça rachada quando se opunha, dos gritos de socorro que ninguém escuta, etc. Ao que esta conversa deu azo para eu chorar. Pois com os copos fico um sensivelzinho de meia tigela, feito pudim. Abraçou-me com os seus braços fortes e senti que ali podia nascer qualquer coisa de positivo. Quem sabe uma luz. Apesar de ainda ser dia, pagamos a conta a meias e fomos, para não variar, para a casa dela. Logo à entrada, na parede do corredor, uma fotografia ampliada e emoldurada, do tal, a olhar de frente, como que supervisionasse tudo e todos. Assusta olhá-lo, ver aquela cicatriz que vai da cara ao pescoço que parece um pequeno mapa de estradas. Ter a imagem dele na cabeça não foi bom, baixou-me os níveis de testerona. Tirou os sapatos, desnudou-se e deitou-se no sofá a imitar uma leoa amestrada. Reparei aí que a Guida tinha uma tatuagem no fundo das costas que dizia: Jesus vive em mim. A televisão contava o caso do violador de telheiras. Lá fora uma chuva de repente. O jamaicano a mirar com os seus olhos fixos na fotografia. A Guida a pedi-las. Eu de repente, sem assunto. Com uma frieza infindável pelos ossos. O desassossego a ganhar volume.

Teve de ser, apanhei-a por trás e comi-a em tempo recorde (59 seg.), depois disso, arranjei uma desculpa esfarrapada e aprontei-me para bulir dali para fora antes que o azar me falasse ao ouvido. Mesmo na altura em que abro a porta para a rua, eis que sem ninguém contar, pois era suposto estar a atravessar a França, o jamaicano, perturbadíssimo, a claustrofobicar-se, a interrogar-se mentalmente a minha presença ali. A Guida apercebeu-se e, de lá de dentro, gritou:

- É o homem da luz, veio fazer a contagem ao contador!

O homem de pele tostada olhou-me de cima abaixo com gravidade, a tentar ser telepático, a querer provocar briga com o olhar, contraindo os músculos do pescoço, fazendo-os estalar, para intimidação, a deixar o mínimo espaço entre a parede e a porta.

Fiz de conta que não era nada comigo e desopilei com a ânsia de engolir um pouco de nicotina. Afinal de contas o mundo não pára nem dá a mínima chance para lhe amarrarmos nas costas e fazê-lo atrasar. Ele anda sempre à nossa frente e, uma coisa é certa, um segundo faz toda a diferença. E outra coisa: aquela tatuagem fez mudar a minha vida!

Enfim, o fim

Só não prego o evangelho pelas portas por falta de tempo e honestidade. Cada um deve comer pelas suas próprias mãos e ninguém tem nada que ir levar deste género alimentício à boca dos outros. Além de que, tenho mau feitio. Sou uma mistura de raiva com descontentamento.
Os caminhos foram feitos para caminhar, portanto, cada um que avance para o lado que quiser. Estou farto de que me venham com ideologias todo-o-terreno.

Só me deixo enganar pela verdade. A existência para mim é um pau de quatro bicos. Comer, beber, foder e depois escrever um poema é o meu lema. Acreditar é tornar-nos loucos e impacientes. Esperamos que a montanha cresça na mão de uma criança.
A Irene foi-se. Foi bom enquanto durou. Apaixonou-se por um cliente que lhe dava boas garantias futuras. E foi-se. E eu de novo à estaca zero. Aprecio os recomeços. Tenho a sensação de que a obscuridade se torna mais visível. Segundo a minha data de nascimento e hora, a astrologia diz tratar-se de uma ruindade.

Leio livros porque não há carne no frigorífico. Engana-se a fome e a porra da solidão. Há dias em que as noites são bem melhores. A sensação que tenho é que, se me cortarem as pernas, ainda assim eu corro, eu correrei para lá do que sou. As minhas qualidades são inqualificáveis.

Falo de mim porque à minha volta não existe ninguém. Eu só, neste quarto que fede a silêncio e sémen. Mesmo cá em baixo sinto-me no topo do mundo. A realidade é um sonho. E o sonho é uma história mal contada. Acredito em sereias mas elas não acreditam em mim. É um dilema, este, o de acreditar em livros. Para felicidade tenho o wisky barato. Para tristeza basta-me a sede constante. Meto ambas num saco e tiro à sorte. Hoje calhou-me a felicidade. Estou safo só de pensar nessa possibilidade. Ter costas direitas não significa que seja gente séria. Ouvi dizer que sou surdo e mudo. É preciso ser-se necessário.

Do que falo só há provas no que escrevo.
Sim e não são talvez.
Coragem é pensar.
Pensar é fazer florir rosas brancas num tabuleiro de xadrez.
A guerra começa onde termina.
Não apostes tudo no sim. Deixa fluir o sol. Eu amo porque conheço-lhe a dor. Daqui ali faz-se um filho.
À parte de tudo somos nada. À parte do nada somos outro tanto.
Tenho deus algures no coração do coração.
Tecto e chão são os meus melhores amigos. Sou triste e isso alegra-me. A minha posição no mundo é de guarda-redes. Só não vendo ideias porque não as tenho. Sou um presumível assassino da morte. Matei a morte.

Não pensar é ouvir-se. Fui Cristo e buda e não me lembro de mais nada e, a sensação que tenho é que ainda dói. Na fúria do mar alto o pensamento tem altos e baixos. Atrás de mim estou eu outra vez. Se o amor fosse digital, amaríamos em série? Felicidade é quando duas moscas batem palmas. Olhos nas orelhas não falta quem. Se a mentira desse subsídios, estávamos podres de ricos.

Juro que além da verdade só digo mentiras. Encontro-me perdido. Achei-me para me perder outra vez. A base de tudo é quem está lá em cima. Nada vezes nada é igual a política. O cigano rouba porque tem vergonha de pedir.
O homem é como a serpente, fabrica o seu próprio veneno. Grande é aquele que tem noção que há muito para crescer. A vida tem encontros imediatos com a morte.

Apesar de tudo foi só uma marca no joelho. Quem tem ferros sabe a tábua que isso é.
Deus alimenta-se de almas, logo, é guloso. No estreito de mim, alarga-se a dúvida. Se, só morre quem está vivo, então, só vive quem está morto. Alguém também é ninguém. Ninguém também é gente. Por vias das dúvidas estamos certos. O bicho come a carne do morto porque não há salgadinhos. É estranho eu não me estranhar.

É azul o verde pranto. A mentira é como a loiça, parte-se, e não foi ninguém. Sonha que ainda a luz não vem abaixo. A vida inteira, a morte incompleta. O que envelhece é a luz. O bom seria partir para o regresso.
Às vezes acontece não haver acontecimentos. O exacto nunca soube como nasceu. O cavalo corre, não pela sua felicidade, mas sim pela sua ignorância. Sejamos menos cavalos. O silêncio é o melhor remédio para a idiotice.

A Irene foi-se embora. Podíamos ter sido felizes. Mas faltava o melhor: a poesia.
Estamos perto de chegar a lado nenhum. Roubar o pão não significa matar a fome. O amor é doce mas sem sexo torna-se amargo. Se não tens para onde ir, desagua num livro. Eu sempre soube que não sabia. Ama primeiro num segundo. Dinheirinho faz dinheiro, e sangue faz sangue.
No circo não fui mais que um simples homem-bala. Em tempos pertenci a um gang de poetas mal inspirados. Agora faço dança de salão numa folha branca. Na verdade, em termos legais e logísticos, estou em ponto-morto. Se a vida tivesse pedais eu podia ir mais longe. Enfim, o fim.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

o amor ao cavalo nº7

Tínhamos planos, a quantidade exacta de filhos a ter, data marcada e tudo para o casório, até ao dia, ao maldito dia em que lhe saiu um segundo prémio na lotaria e, assim que cheguei a casa depois de oito horas a descarregar grades de bebidas da firma Irmãos Torres, a Irene fez o obséquio de me pôr porta fora com nadinha.
Inventou uma data de desculpas sobre o amor de não sei das quantas, que os sentimentos mudam, etc, que estava farta de cheirar o meu suor após uma boa queca, que a felicidade ainda há-de parir um osso, etc. Moral da história: agora sou um pássaro livre que poisa de ramo em ramo.
Ando pela noite à procura de dias melhores. Faço umas apostas em cavalos de corrida mas perco o que ganho mais o que aposto. E saio todo lixado e rouco por chamar grande filho da grande puta ao jockey.

Tenho fome da vida e sede de morte. Deixei de confiar em mulheres. Ao menos as prostitutas, fazem o serviço, paga-se e pronto, desanuviamos, o sangue anima e a nossa mente ganha nova felicidade. Por uns dias as emoções ficam restabelecidas. É certo. Mas isto não é vida.
Estar sempre a investir para ter sexo não é vida para ninguém, muito menos para um tipo como eu que sonha por estes dias encontrar a sua alma gémea, quem sabe, a comprar uma revista num quiosque (vi num filme), deixá-la cair, e eu, cupidamente, a ser mais rápido do que ela, apanhar a revista do chão e passar-lha para as mãos macias. Ela agradece-me nos olhos, e ali, sem que o destino ditasse, nasce uma música perfeita que dias depois nos fará dançar na minha cama de solteiro.
Sonhos, quem não os tem? Até lá vou intercalando com bebedeira sim, ressaca não, apostando no cavalo nº7. Nos meses seguintes, precisei de um bocado de arte para sobreviver. Desde a andar na apanha do morango, passando por tosquiador de ovelhas até a vendedor de óleo de fígado de bacalhau em restaurantes.
Não é para me gabar mas até tinha uma enorme capacidade de persuasão. Toda a gente sabe que em alturas de necessidade até vendemos frasquinhos de bosta, se for preciso.

Mas a sorte, apesar de invisível, é algo estimável. E eu sabia, pá, eu sabia que tarde ou cedo a sorte viria. No beco nº 7 Conheci uma cantora de ópera que me enchia as medidas. Pesava cem quilos, mas isso que importa quando amor não olha a banhas. A vantagem de andar com ela é que ninguém se fazia ao piso. Podia estar seguro que, dela, só lhe queriam ouvir cantar.

A Paloma tinha 3 anos de conservatório e, de quando em vez, fazia umas actuações pelas terrinhas do interior norte, acompanhada por um gira-discos. Ela, lá com os seus gritos histéricos, sempre ganhava algum dinheiro para encher o frigorifico.

Durante um certo tempo andei a beber do bom e a comer comida decente em vez daquela pasta de atum a matar-me o fígado aos bocados. Fornicávamos muito. A Paloma lá nisso era insaciável. Talvez seja este o mistério das gordas.

Cheguei a acompanhá-la em muitas actuações e a dar-lhe moral para que não ligasse a bocas quando alguém lhe elogiava os cem quilos de gordura consistente. Éramos felizes, muito felizes. Fazíamos caminhadas e riamo-nos muitos.

A dado momento meteu na cabeça que queria emagracer, e começou a fazer dietas milagrosas e a querer sempre mais e mais sexo, não com objectivo do prazer, mas porque o médico aconselhou-a como método eficaz de emagrecimento.
Ela, a cada dia emagrecia e eu, cada vez mais a ficar um pau de virar tripas.
Ela disse adeus aos fritos e hambúrgueres e eu disse adeus às pataniscas. Aos poucos e poucos deixava as roupas XXXL e já ousava vestir coisinhas mais leves e provocantes.
O certo é que a Paloma estava a ficar nos trinques, o seu rosto brilhava a milhas e a sua silhueta dava vontade de lhe dar uma silhuetada com os dentes. Ganhou tanto gosto em si, tanto gosto, que me convidou a saltar fora do cavalo, dizendo-me em tom si bemol gregoriano que já não dava mais, que a vida é assim, dá as suas voltas e, e, e, foda-se!, não tive outro remédio senão fazer-me à vida em direcção à rua da amargura, sem nada a declarar a não ser emborrachar-me sete dias e sete noites. Longe do meu record, mas pronto.

Foi precisamente na última noite que conheci a Belmira, uma musa com todos os predicados para o meu sujeito nominal. Uma autêntica febra! Amámo-nos logo à primeira. Cruzámos peles e arrepios e eu fazia grandes exortações poéticas nos seus mamilos. Só com um senão: um acidente deixou-a temporáriamente muda. Foi do susto. O bem é que comia calada, ao contrário da Paloma que fazia um cagaçal do outro mundo ao ponto de os vizinhos certa vez, duas da manhã, pensaram que eu estava a matá-la. Mas entre mim e a Belmira, os dias são passados assim: muita cumplicidade e o amor é o melhor remédio para combater o frio e aquecer os pezinhos.

O problema é que daqui a 7 dias vai fazer nova operação às cordas vocais que, segundo os médicos, recuperará a fala por completo.
A família dela está contente. Já eu, antes de levar o nó na espinha, vou aproveitando os dias até lá, a amá-la perdidamente no sofá, na cama, no lavatório, na escrivaninha, pois quando ela vier curada, a falar, o certo é que,  tal como as outras, a Belmira, mais coisa menos coisa, vai pôr quês no amor, reticências no futuro, aspas no desejo, camadas de interrogações na felicidade, etecétera e tal.  
OK. O bom do azar é que, se isso acontecer, tenho a fezada que vai ser desta que o cavalo nº 7 vai ganhar!

terça-feira, 15 de junho de 2010

Por-tu-gal, Por-tu-gal

No mínimo daremos cinco zero ao Brasil, trazemos a taça embora com o melhor champanhe lá dentro e ainda temos tempo de importar uns pretos para vir trabalhar nas obras. Quando joga a selecção, joga o país inteiro, homens, mulheres, crianças, velhos acamados, atrasados mentais, adiantados mentais, histéricos, casadas, viúvas, virgens, desvirginadas, pobres, ricos, remediados, drogados, pessoas de bem, pulhas, catrapulhas, padres, protozoários, enfim, Portugal inteiro de olhos postos nas jogadas, no esférico, nos craques, no pano verde e vermelho da bandeira nacional.



Um mês e muitos dias a sofrer como dementes, a roer as unhas, a afiar a língua com Super Bocks, Sagres também, a gritar golo quando não é, a tapar os olhos quando o adversário se aproxima da nossa baliza, com suores na testa, tremeliques nas pernas, comichão nas orelhas, febre nos perlimpimpins.

Neste período estamos muito ocupados em discutir pressentimentos, lances, a chamar cabrão ao árbitro, a sonhar com a glória, não a Glória que mora lá mais adiante, mas a glória do nobre povo que sentimos na voz quando gritamos:
Por-tu-gal, Por-tu-gal!

A nossa moral lá em cima, os problemas da nação em stand by, a aguentar os cavalos, os larápios com o caminho livre. Podem roubar à vontade, mas não assinalem faltas mal assinaladas! Pode um automóvel vir por aí distraído, feito animal mítico e matar meia dúzia, mas por favor, não lesionem o Cristiano Ronaldo. Esse faz falta para o poster.

Podem fazer trinta por uma linha, levantar a cara do juro, meter droguinha nas cadeias, arrombar cofres-fortes, dar o ouro ao bandido, pôr de luto os salários, que nós estamos aqui para gritar: Por-tu-gal, Por-tu-gal.

Pode até o fado se tornar rock alternativo, as putas se enfiarem nas matas densas, os pedófilos fazerem estudos de mercado, os velhos sonharem “rente aos cemitérios”, ou as sempre e mesmas sardinhas cair-nos no prato, porque nós, somos cools, e gritamos: Por-tu-gal, Por-tu-gal!

Enquanto um cego pede licença para ver, o pintor pinta um quadro a sangue fresco, os parafusos sem saberem em que porca se hão-de meter, a realidade perdendo a rolha, nós gritamos: Por-tu-gal, Por-tu-gal! Enquanto nos dão lições de moral, cursos de novos oportunistas, sonhos paquistaneses, felicidade em supositórios, portas que se abrem para outras portas fechadas, nós gritamos, Por-tu-gal, Por-tu-gal.

Por outro lado, imaginem só o bom que é, durante o mundial de futebol, cagar no pacto de estabilidade económica, querer lá saber se o Sócrates está metido nisto e naquilo e naqueloutro e naquele mais outro que vai surgir. O importante é que não nos lixem com horas extras porque os jogos é às sete e, a partir das seis começamos a festejar, a aquecer os motores da alma, a pintar a cara de vermelho e verde, a vestir a camisola do euro 2004 e gritar: olé olé olé olé, Portugal, é que é.
Triste notícia não foi saber que as Scuts vão levar com portagens em cima, foi saber que o Nani não vai jogar!
Venham daí os adversários, um por um que nós damos cabos deles, nem que seja com a lógica da batata, porque nós queremos é gritar gooolo, queremos ver o CR7 a levantar a camisola para mostrar os abdominais de aço e as garinas da aldeia grande a apanharem uma moca de entusiasmo e a fliparem com as tatuagens do Raúl Meireles.

I got a feeling que, se formos campeões, o Bocage virá à terra compor um soneto escandaloso e o Carlos Queirós será mais aclamado que o Papa Bento XVI.

Na verdade, pá, nós já ganhamos. Pelo menos durante mês e meio iremos cantar, gritar, pinchar, mijar nas calças de tanta emoção, rir, esquecer que temos a querida EDP, a companhia das águas, as tributações, o IVA, todos eles, simpaticamente a darem-nos mais quinze dias para pagarmos antes de levarmos no coiro.

Um aparte: Por que é que certos políticos nunca podiam ser jogadores de futebol? Simples, o Cavaco, porque não passa bola a ninguém. O Paulo Portas, porque mesmo sem golo iria querer festejá-lo saltando para cima dos colegas com sapatadinhas no cu. O Manuel alegre, por não saber qual em que ala se há-de enfiar. O Sócrates, iria criar suspeitas por querer ficar sempre no banco. O Miguel portas, fumaria a relva toda. O Louçã, questionaria se a bola é uma bola ou se é um barco a remos. O Jerónimo, apenas tem a táctica de: quando a direita cansa, a esquerda avança. A Manuela F. Leite? Bem essa, só por causa do menisco!

Deixemo-nos de tretas e vamos mas é lá pegar na vuvuzela e apoiar a selecção, mas cuidado, nada de pedir o instrumento emprestado, pois agora que isto está tudo mudado, sabe-se que há para aí uns meninos que a tocam de duas maneiras.
Por-tu-gal, por-tu-gal!

terça-feira, 1 de junho de 2010

Vai dar banho ao cão

09:20 no relógio. Chegou a vez de a estação dar tangerinas. A brisa quente espalhada pelas ruas e campos. Os rios de águas paradas, sem canseira nenhuma. Como eu, Jorge da Conceição, ex-caçador de patos bravos, militante de uma fé que há-de surgir por aí. Pequeno-almoço na padaria da Céu. O costume: café com pão. A vida não dá para mais. A morte a cada dia ganha mais valor. A entrevista no centro de emprego é às dez e meia. Faz anos que não sei o que é o despertar com passarinhos irritantes e altruístas. Gabam-se por saberem voar, enquanto nós, na terra, inventando asas de todos as maneiras e feitios.

Vou pela rua, não sei qual, uma rua é uma rua, não importa o comprimento ou a largura. Uma rua é um 3D do quotidiano. Nela tudo é vivo, feita de vozes que vêm das casas, e de miúdos que largam a bola e mijam contra a parede.
Penso que daqui a nada estarei de frente a uma mulher, bonita com certeza, pois o governo tem ordens claras: em gabinete do estado só trabalha mulher bonita! É uma vantagem, esta, de ter a oportunidade em estar com uma mulher bonita, porventura sensual e, se a inspiração me bater, entrar em diálogos sobre superstições até chegar a vias de factos.
Entrei na repartição e, na sala de espera, as poucas pessoas que lá estavam, olharam-me, talvez o meu corte de cabelo não seja dos mais modernos, ou, talvez os meus sapatos branquinhos de verniz estalado cause impacto a quem não conheça as modas de um poeta.
Tirei o ticket e aguardei a minha vez sentado ao lado de uma jovem morena que no anelar da mão esquerda apenas conserva a marca do anel. Peguei numa revista à sorte. Folheava-a só para fingir que lia. O meu pescoço tem o hábito de rodar sempre que alguém entra. É um vício, fora os outros que vou largando e somando.
De quando em vez, uma vozinha meia ruidosa por um altifalantezinho no cimo do canto de uma parede vai chamando um por um. Tenho a impressão que irei causar boas impressões. O meu melhor fato Armandi vai dar que falar. A espera faz criar bichos no pensamento.
Trinta minutos sentado sem fazer niente, é pior que ler uma página do Eu, Carolina. Está bem que preciso de um emprego, mas, será que o emprego precisa de mim? A contradição cabe em mim como uma luva.

Um dia ainda hei-de ser mestre em anedotas e adivinhas. Tenho praticado muito quando fujo à regra três. A morena continua com a sua pose desportiva. Reconheço-lhe talento para o yoga. Tão parada nos movimentos que me faz doer os alecrins. Se lhe perguntar o seu nome, por certo fará a gentileza de dar com a sua mala pesada na minha careca Trostkiniana.

É um sei lá bem, este dia. De repente, a imperceptível voz no altifalante: senhor Conceição! Sem ter ensaiado, levantei-me em sincronia olímpica com a morena.
A desconfiança um do outro, em águas de bacalhau. Dirigimo-nos para lá, os dois, quase lado a lado, em direcção à porta que se abriu a modos de se poder ver que no seu interior, na secretária, está uma mulher, que pode muito bem ser a dos meus sonhos. Cabelos lisos e negros a pender-lhe sobre os ombros semi-nus, olhos perfeitamente desenhados, quase me cegam de tanta luz vindo de dentro.
Sem falar do corpinho, hmm, estou mortinho por contar aos amigos! Era capaz de perder todo o tempo a contemplá-la, se bem que o tempo para mim seja algo eclético. A morena, como se tivesse esperado uma vida por este momento, antecipou-se e passou-me à frente, deixando-me para segundo plano. Ao estar perto da mulher sentada à secretária, falou:

- Temos de nos conciliar, amor, a minha vida sem ti não faz sentido nenhum!

O certo é que, se eu não tivesse lavado bem as orelhas pela manhã, juraria que tinha ouvido coisas a mais. E continuavam a falar, cuja palavra amor, ou no início ou no fim, entrava em todas as frases.
Quis interferir para, sei lá, assim de repente, uma coisa a três, se houvesse disponibilidade, é claro. Mas não me pareceu. A coisa era séria. Tão séria que, num tom à frei Franciscano, meti bedelho na conversa:

- Vá lá, aceita a morena de volta!

Maldita hora que abri a boca. Os olhares de ambas, vocês haviam de ver, quatro olhos enfurecidos, a propor destruição. Se tivessem ali pertinho um taco de baseball…

- Olhe, mas caso não saiba, nós vamo-nos casar pela lei n.º 9/2010, aprovada a 11 de Fevereiro de 2010 e promulgada pelo PR a 17 de Maio. Está pensando em quê, seu anormal, queria ser o padrinho, era?

Fiquei calado, a pensar cá com os meus botões, estas tipas ficariam melhor entregues aos meus bíceps fortalecidos, mas, pronto, teve de ser, dei meia volta ao corpo e dirigi-me à porta de saída, pois sei que lá fora há um sol à minha espera. Elas ficaram lá, fazendo as pazes com uns amassos e uns beijinhos, prestando um belíssimo serviço público, diga-se, mas, antes de ir dar banho ao cão, coloquei a seguinte questão:

- Estive dois anos a descontar em Espanha, se eu fosse vosso padrinho, será que daria para ter as mesmas regalias de um padrinho de lá?

Não responderam. Ou não atingiram o ponto G da pergunta. Bem, nem tudo foi em vão. Pelo menos fiquei a saber mais de leis.