terça-feira, 1 de junho de 2010

Vai dar banho ao cão

09:20 no relógio. Chegou a vez de a estação dar tangerinas. A brisa quente espalhada pelas ruas e campos. Os rios de águas paradas, sem canseira nenhuma. Como eu, Jorge da Conceição, ex-caçador de patos bravos, militante de uma fé que há-de surgir por aí. Pequeno-almoço na padaria da Céu. O costume: café com pão. A vida não dá para mais. A morte a cada dia ganha mais valor. A entrevista no centro de emprego é às dez e meia. Faz anos que não sei o que é o despertar com passarinhos irritantes e altruístas. Gabam-se por saberem voar, enquanto nós, na terra, inventando asas de todos as maneiras e feitios.

Vou pela rua, não sei qual, uma rua é uma rua, não importa o comprimento ou a largura. Uma rua é um 3D do quotidiano. Nela tudo é vivo, feita de vozes que vêm das casas, e de miúdos que largam a bola e mijam contra a parede.
Penso que daqui a nada estarei de frente a uma mulher, bonita com certeza, pois o governo tem ordens claras: em gabinete do estado só trabalha mulher bonita! É uma vantagem, esta, de ter a oportunidade em estar com uma mulher bonita, porventura sensual e, se a inspiração me bater, entrar em diálogos sobre superstições até chegar a vias de factos.
Entrei na repartição e, na sala de espera, as poucas pessoas que lá estavam, olharam-me, talvez o meu corte de cabelo não seja dos mais modernos, ou, talvez os meus sapatos branquinhos de verniz estalado cause impacto a quem não conheça as modas de um poeta.
Tirei o ticket e aguardei a minha vez sentado ao lado de uma jovem morena que no anelar da mão esquerda apenas conserva a marca do anel. Peguei numa revista à sorte. Folheava-a só para fingir que lia. O meu pescoço tem o hábito de rodar sempre que alguém entra. É um vício, fora os outros que vou largando e somando.
De quando em vez, uma vozinha meia ruidosa por um altifalantezinho no cimo do canto de uma parede vai chamando um por um. Tenho a impressão que irei causar boas impressões. O meu melhor fato Armandi vai dar que falar. A espera faz criar bichos no pensamento.
Trinta minutos sentado sem fazer niente, é pior que ler uma página do Eu, Carolina. Está bem que preciso de um emprego, mas, será que o emprego precisa de mim? A contradição cabe em mim como uma luva.

Um dia ainda hei-de ser mestre em anedotas e adivinhas. Tenho praticado muito quando fujo à regra três. A morena continua com a sua pose desportiva. Reconheço-lhe talento para o yoga. Tão parada nos movimentos que me faz doer os alecrins. Se lhe perguntar o seu nome, por certo fará a gentileza de dar com a sua mala pesada na minha careca Trostkiniana.

É um sei lá bem, este dia. De repente, a imperceptível voz no altifalante: senhor Conceição! Sem ter ensaiado, levantei-me em sincronia olímpica com a morena.
A desconfiança um do outro, em águas de bacalhau. Dirigimo-nos para lá, os dois, quase lado a lado, em direcção à porta que se abriu a modos de se poder ver que no seu interior, na secretária, está uma mulher, que pode muito bem ser a dos meus sonhos. Cabelos lisos e negros a pender-lhe sobre os ombros semi-nus, olhos perfeitamente desenhados, quase me cegam de tanta luz vindo de dentro.
Sem falar do corpinho, hmm, estou mortinho por contar aos amigos! Era capaz de perder todo o tempo a contemplá-la, se bem que o tempo para mim seja algo eclético. A morena, como se tivesse esperado uma vida por este momento, antecipou-se e passou-me à frente, deixando-me para segundo plano. Ao estar perto da mulher sentada à secretária, falou:

- Temos de nos conciliar, amor, a minha vida sem ti não faz sentido nenhum!

O certo é que, se eu não tivesse lavado bem as orelhas pela manhã, juraria que tinha ouvido coisas a mais. E continuavam a falar, cuja palavra amor, ou no início ou no fim, entrava em todas as frases.
Quis interferir para, sei lá, assim de repente, uma coisa a três, se houvesse disponibilidade, é claro. Mas não me pareceu. A coisa era séria. Tão séria que, num tom à frei Franciscano, meti bedelho na conversa:

- Vá lá, aceita a morena de volta!

Maldita hora que abri a boca. Os olhares de ambas, vocês haviam de ver, quatro olhos enfurecidos, a propor destruição. Se tivessem ali pertinho um taco de baseball…

- Olhe, mas caso não saiba, nós vamo-nos casar pela lei n.º 9/2010, aprovada a 11 de Fevereiro de 2010 e promulgada pelo PR a 17 de Maio. Está pensando em quê, seu anormal, queria ser o padrinho, era?

Fiquei calado, a pensar cá com os meus botões, estas tipas ficariam melhor entregues aos meus bíceps fortalecidos, mas, pronto, teve de ser, dei meia volta ao corpo e dirigi-me à porta de saída, pois sei que lá fora há um sol à minha espera. Elas ficaram lá, fazendo as pazes com uns amassos e uns beijinhos, prestando um belíssimo serviço público, diga-se, mas, antes de ir dar banho ao cão, coloquei a seguinte questão:

- Estive dois anos a descontar em Espanha, se eu fosse vosso padrinho, será que daria para ter as mesmas regalias de um padrinho de lá?

Não responderam. Ou não atingiram o ponto G da pergunta. Bem, nem tudo foi em vão. Pelo menos fiquei a saber mais de leis.


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