terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Como se faz um país?

Hoje acordei com a sensação de sábio. Desculpe este egocentrismo mais dilatado que o meu próprio umbigo. Isto de pensar sem equacionar os prós tem os seus quês, que, por vezes, accionar a alavanca do pensamento tem as suas inglórias, logo: “é mais um tijolo contra a parede”. Hoje foi assim: acordei com a pergunta no céu-da-boca: como se faz um país? Uma questão tão simples mas que me estragou logo o pequeno-almoço na pastelaria ao pé da Guarda Republicana.
O meu bolinho de arroz matinal desta vez soube-me a restos de implantes mamários. Andei meio coxo devido à responsabilidade do ter que responder a esta pergunta, que se desarrolhou de um sonho meio sonâmbulesco.

Certo ou errado é que, ao passar por um edifício em construção tive um clique! Pois bem, areia e cimento será sempre necessário para começar qualquer coisa, até mesmo o amor, já que, amar ao relento, não traz benefícios fiscais. Ou seja, um país faz-se do mesmo modo que se ergue uma casa: com muita areia e cimento! Mas esta pequena ideia não bastava para concluir o meu país. Reparei então num cego que pedia. Intuí: eh pá, um país precisa sim é de ceguetas a estender a mão para que outros se possam governar. Exactamente, sem tirar nem pôr. Lé com cré. Criar uma consessão de pedintes e sub-pedintes para um bolso só. Mais adiante reparei numa rua que, por ser esburacadamente bela, dá muito serviço ao agente próximo da funerária. Fantástico!
Depois, sem querer, descobri homens e mulheres rapando os contentores, dilatados nos estômagos pela fé e pelo feijão que o supermercado não vendeu e deitou fora. Mas estava limpinho!
Aqui, neste pim pam pum, fiquei de sensação cheia de que o meu país começava a ganhar contornos. Muita fome, miséria a posar para a fotografia, prostitutas, proxenetas, crocodilos, simpatizantes, Barbies na banheira, hipocrisias, lá diz o João, lá diz o José, também fazem falta para compor uma nação.

Ao passar perto do tribunal, calhei de ouvir um magistrado dizer a um vagabundo: agora vê lá se te portas como deve ser, meu rapaz! O vagundo, assim que pôs um pé fora do tribunal, socou dois polícias, apertou o nariz à senhora do balcão, urinou contra o edifício público, mandou sete balas para o céu e dois por debaixo das pernas arcadas, numa imitação perfeita do John Wayne, que até o magistrado comentou com um colega da magistratura: - Como eu adoro este rapaz. As coisas que ele sabe fazer!
Entre tábuas e arvoredos vi e ouvi um senhor de Lamborghini a dizer a um puto: queres andar a 200 km\hora, meu menino? O puto maravilhou-se, entrou no carro, e nunca mais se ouviu falar nem de um nem de outro, a não ser por fotografias. (O do Lamborghini era o que estava a sorrir).

Um país faz-se ao contrário do amor, sem escolher o melhor chão, faz-se em segredo como os amantes, com assinaturas falsificadas, muito enredo, com muita bosta, corrupção, anestesia para os neurónios, matança em câmara lenta, com muito filho da puta a vir à televisão dizer está tudo bem, está tudo bem, olhem só p’ra mim! Um país faz-se com mais ignorância do que sabedoria, se for à sombra da bananeira é que é bom, enquanto se olha a senhora Crise a depilar-se toda para encornar milhões de gente.
Faz-se com porrada em cima do lombo daqueles que tentam dizer um ai da boca para fora, faz-se no escuro, a apalpar o rabo uns aos outros enquanto se discute matéria de Estado e em que bolso se há-de meter a mão. Um país faz-se entre as três e as cinco da tarde, que é quando dá mais vontade de fazer necessidades fisiológicas. Mijar, para ser mais preciso. Faz-se num campo de batatas, como quem as semeia, mas se te abaixas mais um pouco…

E assim, meus amigos de várias idades, a maqueta ia-se fazendo, evoluindo, dentro da minha cabeça como um peixe a crescer, quando, ao comparar as semelhanças com este nosso querido país, pensei: eh pá, se já tenho este, para quê querer outro igual? Então comecei a correr, a correr muito, feliz, muito feliz, por saber que moro num país paisagístico que não cobra por chorar, que tem o fado e a saudade que se amam mas que não fornicam, e tem poetas e críticos como eu para converter lágrimas numa bebedeira azul, e tem a morte a vida no mesmo envelope aqui na caixa do correio, e tem a noite e o dia com cara de pau, e tem o amor e o ódio a costurar sonhos com fios de lágrimas, e tem o certo e o errado a rapar o prato, e tem acima de tudo, abaixo de nada, para quem pode, para quem phode, o domingo para descansar!

sábado, 25 de dezembro de 2010

Enfim, nunca pior

Até aos 35 anos achava-me um tipo especial. A minha caixa de correio era invadida por cartas com declarações descaradas de fulanas que conhecia por aí. Na mesa de um bar, havia sempre um lugar para mim, davam um jeitinho para lá, para eu caber. Até a liberdade de pôr os cotovelos na mesa e tossir umas piadas me era permitido. Até essa data tinha um negócio que rendia, apesar de o Estado não me reconhecer tal mérito, uma vez que o evitava dado aos meus negócios pouco fundamentados.

Comprava relógios de pulso semi-avariados, ao que depois de algumas mexidelas neles, ficavam aptos para transacção e o lixo já não era os seus destinos. Vendia-os a preços de fazer crescer os bolsos e, o meu Ego alternativo, agradecia. Tudo corria de vento em pompa, inclusive tinha um projecto para uma casita metido na câmara, em andamento. Juntei negócios a outros negócios. Senhores do banco davam-me cumprimentos ainda que estivesse a dobrar a esquina. De sucata fazia obras de arte dignas de andar a mostrar de café em café. Ora bem, para além dos relógios, vendia uns cristoszinhos em imitação de pau-preto, umas pratas banhadas a ouro, etc.
Até que um dia deu-se o caso: o fornecedor resolveu bater a bota sem anunciar, assim sem mais nem menos, e eu, fiquei com o stock reduzido a meia dúzia de tringalhos para pendurar ao pescoço. Por consequência, deu-se a falência acompanhada de uma banca rota a todos os níveis: quer física quer mental. 
Agora estou na casa dos cinquenta, vejo a minha vida sendo ultrapassada por figurões mais habilidosos. Bem tento sociedades, mas como é preciso entrar com algum, fico-me pelo projecto rascunhado em guardanapos. Vou aos mesmos sítios e ninguém se chega para lá para eu poder caber. Deixei crescer pêra a ver se fintava a má sorte anunciada, mas mesmo assim entrei em descrença geral. Antes, as pessoas diziam-me, “tem tempo para pagar”. Agora, perguntam “deixa ver quanto é que tens na mão?!”, com o medo que lhes espete uns tentos. O trato de você desceu para tu isto, tu aquilo. O meu carro, que tanto sucesso me deu, tem neste momento um papel colado no vidro de trás a dizer “VENDO”. A minha prosa deixou de ser útil e agradável às moças que elogiavam os meus casacos de cabedal genuíno. Os meus amigos já não respondem às mensagens do telemóvel. No café não existe ninguém que se ofereça para jogar comigo à sueca. Por isso, dedico-me às paciências e, mesmo assim, só com algum trocadilho é que consigo ganhar. Os dias passam, as pernas vão-se cansando ao ponto de formarem um arco. O vento parece estar cada vez mais irritado com as questões humanitárias, a solidariedade já conheceu dias melhores; há caninos na opção do menu. Tudo mudou. As mínimas vontades caíram em desgraça. O planeta está decidido a não perdoar. Deus deixou recado mas ninguém quis ouvir. Qualquer coisinha que metemos à boca já dá vómitos. E por aí adiante. Por isso, eu não tenho a culpa que a Sorte tivesse guinado o volante no começo de uma recta. Ando só, embutido neste turbilhão de gente que se arma em feliz. Mas cuidado, nem sempre a fruta mais apetecível é a que tem melhor sabor! Há sempre um dia em que o sonho nos prega uma partida e aí, quero ver quem é que se vai governar com pouca sabedoria. De todo o resto, e alterando um pouco a cantiga, sou teso mas sou feliz!, passo manhãs inteiras no corredor do departamento das finanças, preenchendo formulários a velhinhos mal informados, a troco de uma bucha de qualquer ninharia, uma gorja; alguns até me chamam de doutor. Enfim, nunca pior!

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Só uma coisa se compara aos prazeres da cama: que é a sanita. venham doutorados, dramaturgos ou psicadélicos dizerem que não, mas, ó meus amigos, a sanita, o acto de sanitar, é, e aqui afirmo com convicção poética, um culto à humanidade! bem haja o seu inventor! sei que não acrescento nada de novo, pois toda a gente sabe que heinsten descobriu a fórmula da teoria da relatividade no momento alto em que puxava a retaguarda com uma ferocidade medonha, onde no seu pico máximo, gritou: e=mc, que, depois de ficar mais solto, aliviado o trânsito intestinal, suspirou: ao quadrado! e desta forma teve a sua eureka: e=mc ao quadrado. o senhor kafka, segundo notícias do sanatório, escreveu o Processo e a Metamorfose comodamente alapado na sanita, sem se preocupar com quem estivesse a seguir. não se surpreenda com estas revelações, eu próprio estou a escrever este texto com as naldegas numa retrete branquinha, enquanto espero pacientemente de fazer a minha vida. aliás, e desculpe o meu exagerado presuncionismo, pergunto: quem é que nunca leu uma página de livro, revista, carta de amor ou enviou mensagens pelo telemóvel enquanto arreia o calhau? quem é que nunca se sentou com o portátil nas coxas enquanto obra? é um prazer, você sabe que sim, a gente ali, em módicos pensamentos ancestrais, num auto-conhecimento, deitando por fora toda a tristeza, ora diga lá se não é. Mais: cagar é como o sexo: para bom funcionamento do corpo e alma é preciso quase um ritmo diário, um reloginho interno que, se falha por dois ou três dias, ah pois é, vai a nossa valentia para o tanas, e ainda por cima sujeitos a ser supositoriados.
aliás, esse equilíbrio é tão importante que, se houver greve em uma das partes, o nosso pensamento foge-nos para guerras frias.
saibam desde já que discurso de político também ele é feito dentro desta magia. nossos olhos viram para dentro, há um arrepio de pele, uma força cósmica nos queixos e pescoço quando puxamos por ele, o tal, que começa em ca passa por ga e acaba em lhão. meus amigos, este texto pode não ter poesia necessária, mas uma coisa vos digo: cagar é viver! e não se sensibilize, nem feche os olhos por ler o que leu, pois a vida termina no dia em que a tripa der um nó. dirão vocês que sou um desenvergonhado, que a minha literatura é feita de esterco. enganam-se aqueles que pensam que sim, já que a maior parte dos profetas antigos foram altamente iluminados antes e depois do tal acto que vos venho falando. é certo que a espiritualidade aumenta, a nossa comunhão com  as questões universais, idem aspas, a nossa relação com a literatura é um caminho de descoberta. vejamos, eu próprio descobri, por estes dias, no frescor da minha casa-de-banho, margarida rebelo pinto, o que me deu um enorme prazer, pois agora sei - e recomendo - que há géneros literários especializados em casa-de-banho. a TV7+ também tem boas crónicas para o efeito. a revista Maria, já não, pois tem um formato muito pequeno e as folhas têm uma textura que...sinceramente...arranha.
poderemos largar todos os vícios, negar os prazeres da amante, deixar de dar banho ao cão, mas, meus senhores, por mais bons costumes que tenhais, acabareis sempre numa retrete e, na maldita hora em que fizermos por nós abaixo, lá se vai o nosso Ser, a nossa metade, porque, enquanto tivermos forças para puxar, o nosso sorriso é de oiro.
nunca se esqueça: cagar é viver! e, quem diz que a vida é assim ou assado, não sabe o que diz, porque, como diz e bem o meu amigo poeta Laureans: “A vida é a única merda que vale a pena cheirar”.
Foi num dia que passou e o ventou rimou no face da rapariga. ela era linda como o sole. tinha uns olhos meios egípcios meios romanos. uma maneira de pegar no cigarro que sinceramente foge-me o pensamento para outras bandas. um cabelo, oh, um cabelo liso que nem Dustin Flemming seria capaz de reproduzir, quanto mais Baudelaire nas suas expressões de quadricomia. as suas mãos inspiram qualquer poeta de rua. ela ali, sentada, ar culto, mexendo o açuçar no café, em movimentos circulares e pensativos. talvez uma estudiosa de Fernando Pessoa, ou bióloga marinha, ou então quem sabe, ambas as coisas. esperei que ela se fosse, disfarçando uma leitura no jornal. eis que se levanta, com leve esforço, coxeando em uma das pernas. desde esse dia, a cultura deixou de ter significado para mim.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

mas quem será o pai da criança


Não há memória de alguém assim. Homem com duas cabeças que nasceu lá na aldeia faz cinquenta e tantos anos. Dois velhos no mesmo corpo. Dois pescoços erguidos sobre um largo ombro. Duas vozes a responder diferente à mesma pergunta. A bem dizer, dois casmurros sem remédio que, se não fosse o pároco da freguesia a botar-lhes a mão não sei o que seria da vida deles.

Por serem assim, julgam as pessoas que eles já nasceram velhos, com as ideias meias enferrujadas, com talento para andarem à cabeçada um com o outro. Pois, senão esta, a melhor maneira de um mostrar a razão ao outro. Lá na aldeia todos conhecem o Micas e o Zicas. Um sortudo e um azarista. Um paciente o outro nem por isso. O Micas desfaz a barba, o Zicas já não. O Micas espera arranjar namorada, já o Zicas quer é conhaques e utilizar a mão esquerda para escrever poemas e mais sei lá o quê. Se um diz preto o outro diz branco, se um quer ir a Coimbra o outro quer ir a Viseu. Já se está a ver a grande barricada que para ali existe naquele corpo. Duas pessoas a decidirem o que hão-de comer é complicado, complicadíssimo, sobretudo quando partilham o mesmo estômago, o mesmo fígado, o mesmo coração. O Zicas come de tudo e mais o que lhe vier à boca, lambuza-se com pastéis de nata e toucinhos de porco, o Micas é  o contrário, evita fritos, gorduras, e passa-lhe um raspanete, até porque, o que cada um come sai pelo mesmo escape e quando sai grosso, o aperto é dos dois. Por isso é que por vezes se zangam, os cigarros que o Zicas fuma, faz padecer o Micas, e a tosse é de ambos.

O Micas acorda cedo e quer-se pôr a mexer da cama, o Zicas é um tormento para se despregar da cama. Se houvesse uma motosserra que os separasse bem divididos, sem que haja coisa de maior, com certeza que o Micas, o comportadinho, seria o primeiro a dizer que sim. Ter que conviver com uma cabeça que pensa exactamente o contrário de si, é obra. Mas, direitos ou tortos, lá vão andando pelos dias. Tantos que para se saber terei de multiplicar os dias pelos anos que eles têm. O problema maior é quando a um vem um desejo daqueles de ir às raparigas. Está-se mesmo a ver o sacrifício, pois é difícil arranjar uma mulher disposta a alinhar com os dois.

E foi precisamente a falta de uma namoradinha que começou a causar neles um tristemente amargurado sem fundo, sem literatura para a descrever. As duas cabeças aparentavam ares de terminal. Ainda virgens, sem nunca terem espetado o garfo, desconsoladíssimos da vida, quem é que aguentaria.

Mas um dia, um bendito dia, o próprio pároco, humanista como tudo, ao saber desta desgraça, encarregou-se ele próprio de fazer boas bondades ao Micas e ao Zicas onde, volta e meia, lá com as suas misericórdias, conseguiu arranjar uma moça que de vez em quando passeava lá pelos quintais. Ela primeiro hesitou, mas depois achou a ideia brilhante. No fundo encarou como uma experiência, uma espécie de ménage a trois ou um 2 em 1, como lhe queiramos chamar.

E foi no segredo dos deuses que o pároco, pelo denso da noite, meteu a mulher em casa deles. Apesar de serem duas bocas, quatro-olhos, quatro orelhas, dois pescoços, só havia um corpo dos ombros para baixo, logo, é fácil entender que só havia uma linha para enfiar na agulha. Fosse como fosse, eles lá se entenderam e a noite durou mais que o dia, dentro do quartinho onde o escurinho era tão bom, era tão bom. Aliás, única exigência da mulher para não levar tamanho susto ou arrepio.

Resultado: a coisa rolou dentro do que se pretendia: oferecer uma noite de sexo e prazer ao homem de duas cabeças. Só que, ou por uma falha de cálculos ou por excesso de energia daquela, nove meses depois apareceu o imprevisto: a mulher deu à luz um rapaz, um fedelho bem feitinho. O problema estava agora em atribuir a paternidade. Afinal, quem era o pai da criança, o Micas ou o Zicas? Quem é que tirou mais proveito? Certo é que o puto foi crescendo dentro desse ambiente, sem saber a quem chamar pai. Os tribunais não sabiam como decidir a coisa. Adiamentos em cima de adiamentos. Alguém tinha de dar colo ao puto e desembuchar o dinheiro para as fraldas.
O tempo foi passando e o processo arquivado. O homem de duas cabeças continuou a sua rotina dando ao badalo no sino da igreja e, quando o puto, já grande, de ranho no nariz, vinha a mando da mãe pedir algum para o sustento, tanto o Micas como o Zicas, que até ali discordavam e discordavam e discordavam, diziam bem alto a uma só voz: vai chamar pai a outro, pá!


nota desinteressante: como o puto era um irrequieto do caraças e com queda para carapau de corrida, facilmente se deduziu que era filho do Zicas, o atravessado, já que herdara um dom congénito. Não havia dúvida e assim foi. Mas, a dadas páginas da vida, o comportamento do puto mudou radicalmente. Tanto que mudou que acabou por entrar no seminário e em três tempos se fez padre. Enfim, suspeitas à parte, a hereditariedade já não é o que era dantes.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Ferra aqui que eu deixo!

Na verdade hoje tenho pouco a dizer. Estou a chegar do confesso e sinto-me leve.
Pelo menos poupei na consulta que tinha no psicólogo.
O padre tem a bendita paciência para escutar histórias macabras, coisas de puta madre, enfim, a minha vida de trás para a frente, tipo fita americana.
Tento manter este elo de ligação entre o chão e o céu, sabe-se lá o dia de amanhã e, entre o sim e o não, prefiro o talvez quem me ajude.
O padre já se habituou aos inúmeros pecados que, gentilmente, faço desenrolar tal como uma lista de compras. Peco aqui, peco acolá e depois, salda-se os pecados todos com umas ave-marias muito à minha maneira, ao meu estilo meio “analfabruto”.
Se há pessoas que sabe que a Zélia anda a marchar comigo às sextas é o padre Sintra, está a par de tudo, até dos ataques que ela tem de ninfomaníaca quando ao telefone me diz: «ferra aqui que eu deixo».


Depois, dá-me lições de moral a troco de umas moedas na caixa de esmola.
É justo.

Cada pecado tem um preço e não vale a pena pedir rebaixa. A vida é assim, uma simbiose entre uma pedra e um pau.
E foi assim que começou o mundo, à pedrada e à paulada, não é verdade, caríssimos irmãos?
Na escola dão-nos rebuçados se portarmo-nos bem, em graúdos dizem que os rebuçados fazem mal aos dentes. Sinceramente, já não sei em que ponto hei-de ficar, se a chupar rebuçados ou dar a chupar.


Isto foi um aparte, aliás, são os apartes que enchem uma história, um namorico, um amor sério. As estrelas não me inspiram sequer uma canção, mas a Zélia sim, quando ela quer leva-me ao cume do cume, sem grande esforço de ancas, diga-se de passagem.
Tenho ido aos ninhos mas não tenho a sorte.
Da última vez, convidei o padre Sintra para que fossemos os dois dar uns tirinhos lá pela mata. Logo se fez disponível e fomos num sábado de manhã, ambos bem equipados. Dentro dos fatos parecíamos duas alfaces, de caçadeira aos ombros.


Os melros nesse dia pareciam estar de folga, pois nesse sábado, ó diacho, é que nem melros, nem perdizes, nem nada.
O céu estava vazio.
Pássaros, só um papagaio azul, que mal sabia se pertencia à terra ou ao céu. Apanhamo-lo junto ao ribeiro, estava a molhar o bico. Meti-o logo numa gaiola.


Ainda assim o dia foi proveitoso, deu para conversarmos bastante sobre o país, sobre as gentes da aldeia, sobre a Zélia…, as habilidades que ela tem…, enfim, conversas de homens, onde se falou de tudo menos de putas, como é óbvio, visto que, padre que é padre, tem sempre más lembranças.


Metemo-nos no jipe e deixou-me à porta de casa. Depois de um dia grande só queria era cama. Estava como um abade. Barriguinha cheia, alma serena, a Teresa Salgueiro, com aquela voz de bezerro à nascença, no aparelho a embalar-me. Para coisa ficar completa uma queca vinha mesmo a calhar. Não foi possível porque a solidão não baixa as calças a ninguém.
Passei a noite toda a sonhar com pássaros.
Na minha mente, pássaros.
No meu corpo, pássaros.
Era pássaros aqui, pássaros acolá.
Houve uma altura que disse bem alto, porra para tanto pássaro e nenhuma gaiola!
Amanheci com uma vontade esotérica de desabafar lágrimas secas com alguém do sexo oposto.
A Zélia deixou de dar notícias, o que achei estranho, pois já passaram três sextas-feiras e não deu sinal nenhum.
Antes que entrasse por vias de depressão, peguei na bicicleta e fui à casa da Zélia o mais rápido que pude. Bati à porta as tais cinco vezes seguidinhas e ninguém respondeu.


Sei que Zélia tem um feitio filho da polícia mas não é pessoa de desaparecer assim do nada. Dei duas voltas à casa e tudo na mesma: a casa sem sinal de vida.
Pelo caminho alguém disse tê-la visto na igreja, que já nem parece a mesma, convertida na fé e nos braços do Senhor. E de facto sim, mal olhei a cara da Zélia, nem parecia a mesma, olhos vidrados nos santos, de joelhos no chão, a rezar com a devoção de um povo inteiro.
Aproximei-me. Nisto, o padre Sintra tocou-me e, num bafo de voz, disse-me:


- Deixa-a estar, Bilinho. Está no silêncio da sua oração a trilhar os seus caminhos. Ela sentiu o chamamento…


Pensei, quem diria. Mas não deixei trespassar o pensamento, guardei-o naquela gaveta da memória onde eu e a Zélia, juntos, fizemos boas transpirações.
Ao regressar lembrei-me em passar rente ao muro da casa do padre e pegar numas amoras que cresce para o lado de fora. Ouvi uns barulhos, uma voz a chamar. Resolvi subir o muro e pus-me à coca.
Era o papagaio. Quem o viu e quem o vê. Estava gordinho o filho da mãe.
O papagaio dizia umas coisas que eu queria entender.
Então, subi ainda mais o muro, mas com cautela, pois sobre ele tem duas fileiras de arame farpado.
No ponto alto do muro, escorreguei para o lado de dentro, bati de cu no chão e fiquei num oito. O papagaio bateu asas, como que aplaudindo, o sacana, fazendo troça de mim, ao mesmo tempo que dizia naquela voz telecomandada:


- Ferra aqui que eu deixo! Ferra aqui que eu deixo!


O padre apercebeu-se e falou:
- Quem vem lá?


Desta vez fiquei calado.







terça-feira, 31 de agosto de 2010

«a minha vida dava um livro»

«A minha vida dava um livro»


Quantas vezes ouvimos dizer «a minha vida dava um livro». Pois bem, sabendo que a iliteracia bate recordes espectaculares – e nisso tiramos vantagem de longe sobre qualquer país –, há que ter cuidado com o que se diz. Primeiro, porque existem vários estilos de livros e para todos os gostos e feitios e medidas e, quando alguém cai sem termos nestes termos, há que referir especificamente o teor do livro para não se cair em enganos, pois há para aí muita gente atrevida que aproveita qualquer deixa para criar graçolas de género porno-popular. Segundo, porque os livros não têm culpa das desgraças dos outros, nem tão-pouco servem de lenço de mão para choramiguices.
E terceiro (esta sim, a mais importante que Deus botou ao mundo) quem diz que a sua vida dava um livro ou é do Benfica ou é maneta. Do Benfica porque, só um grande benfiquista guarda na memória o passado e, ao escrevê-lo, ao avivar os tempos, será uma forma de limpar o pó das taças. Já o maneta, bem, esta era só para enganar. E a gente pergunta, ora diz lá tu ó mon amie por que é que a tua vida dava um livro?

- Tá calado, pá, a minha vida, ui, tantas coisas, ui, nem queiras saber!

Já sei, o pessoal responde assim para não sabermos já a história, muito menos o final, logo, quem quiser sabê-lo, há que comprar o livro, será? Ou talvez, esperem lá, eles não adiantam partes do livro que é para a gente não gamar ideias, sob pena de plagiarmos a vida deles.
Não entendo, estou “Confúcio”. Muita gente diz que a sua vida dava um livro, mas, o certo é que poucos a escrevem. Falta de editora? Estão à espera da implementação total do acordo ortográfico? Ou será que estão a adiar, adiar, adiar para haver mais páginas para contar, até ficar assim, bem grosso, depois mostrar aos amigos que as suas vidas são muiiito muiiitíssimo cheias. Olha, vês aqui, a minha vida, trezentas páginas, toma! A minha vida dava um livro… alguém me explica, por favor, por quê um livro. E por que não dois livros, ou uma tiragem de 300 exemplares.
Imaginemos se aquele que escreveu a sua própria vida, está a lê-la no repouso da sua sanita branquinha e, naquele momento magistral em que se ergue para l&mp*r o ku, pumba, cai o livro lá dentro. Já viram o desastre, a sua vida, na sanita. Depois está claro que se arrepende por não ter tirado fotocópias. Bem, com esta brincadeira já estou a dar um alerta. Amigos, para quem está a pensar em ter a sua vida num livro, ao fazer e ao fazer, mande logo imprimir uns dez ou vinte. Além de ficar mais protegido contra eventualidades, sai mais em conta, ouviram? Ó pá, mas que mania é essa de virem dizer: a sua vida minha um livro. O que terão as suas vidas de tão especial ao ponto de pensarem que alguém daria dez ou quinze euros por ela. E por que a vida não daria um disco? Ou um baralho de cartas? Ou um quadro com jarras pintadas? Mas por que raio um livro? Qual é a obsessão de se querer sacrificar uma árvore, que não faz mal a ninguém, só porque um lamechas se lembrou numa noite de copos que queria escrever o livro da vida dele. Às tantas julgam que escrever dá saúde, lá por o Saramago ter morrido aos 86 anos. Então para isso dediquem-se ao cinema, que duram pelos menos 100 anos, não é Manoel?
Sinceramente, não me entra no córtex central. A minha vida dava um livro…Esperem!, a não ser que a ideia passe em dar a escrever fora, como fez a Carolina Salgado, e afins. Poupa-se tempo e não se cansa a cabeça. Deve ser isso. Vamos lá ver uma coisa, as pessoas são totós ou quê, escrever um livro é ir ali à farmácia e pedir supositórios de inspiração? Olhe, faça favor, queria um Livrex em cápsulas. Em cápsulas não há, temos pena. Não, pena não quero, faz calo no dedo. Estou a ficar avariado, os livros de filosofia do décimo ano não falam disto, mas sempre ouvi dizer que todo o homem para ser homem deve fazer um filho, plantar uma árvore, e escrever um livro! Eureka! Ah, então vem daí. Ai estupores que não me avisaram antes de escrever esta crónica. Bem que podiam ter dito logo, rapaziada, assim não estava para aqui a atirar barro à parede. Ainda por cima começa pelas tarefas mais fáceis: fazer um filho! Ou será por fases? Só plantas a árvore se fizeres um filho. Só escreves o livro se plantares a árvore e fizeres o filho. Alguém está aqui a perguntar: e quem não truca-truca, nunca escreverá um livro?
Ok, eliminemos então esta questão idiota. Aguardem. Estou a pensar. Vou fazer um xixi e volto já. Ainda aí estão? Óptimo. Ora bem, ora bem… (não, não sou pago à letra, isto é mesmo assim) Ah, valeu a pena ter ido soltar a bexiga. Já sei a solução: Ora, quando alguém diz «a minha vida dava um livro» esse alguém não é parvo não, pois sabe muito bem, por a + b elevado à raiz quadrada vezes 69, que levará outra vida a escrevê-la, logo, são mais anos, de vida! Ó pá, posto isto sim, a minha vida é que podia dar um livro, mas infelizmente pá, o Kamasutra chegou primeiro…

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Coito interrompido

Se há coisas que detesto é que me interrompam em alturas indevidas, nomeadamente quando estou a fazer amor e o telefone toca, por exemplo. Ou quando o gajo das pizzas engana-se e bate à porta errada, que por acaso é a minha. Fico disléxico. Se eu fosse presidente do Irão accionava logo a bomba atómica.
Felizmente e ainda bem que não sou, caso contrário, isto já tinha ido, pois tantas são as vezes que me acontecesse ser interrompido no momento em que. Há pessoas que parecem que adivinham. Olha, vou cortar o contentamento àquele gajo e trrrimm, trrrimm. É um atentado ao meu machismo, pois acabo por ficar mal perante a parceira. Outras vezes nem me concentro direito só de pensar que porventura alguém virá tocar à campainha logo após os preliminares. As pessoas são burras ou quê? Então elas não sabem o quanto fica estragar a festa? Quem cura os danos que ficam na memória? Deviam saber que da forma como está o país e o mundo, cada erecção custa uma fortuna. E, “levantai hoje de novo” é só mesmo para quem sabe a letra toda.



Há erros que sinceramente deveriam dar pelo menos dez anos de cadeia que é para não haver chance de ninguém nos incomodar. Ou então pô-los outra vez a estudar na escola primária a ver se aprendem de uma vez por todas. Vocês sabem, né, que há erros que nos ferram por dentro. Que é o caso de estar a assistir a um filme japonês e de repente baterem à porta os da Jeová. Ainda por cima duas velhinhas, com ares de vela ardida, a impingir-nos um Deus novo e todo miraculoso; em vez de nos mostrarem as diferenças entre o pau-santo e pau de Cabinda.



É preciso boa dose de paciência para controlar o fogo que me arde nas veias. Detesto estar a ler o jornal, que é meu, comprei-o, e virem-me pedir a página dos classificados ou do horóscopo, por um minuto. Por um minuto, vejam lá. Como se um minuto fosse menos que sessenta segundos.



E eu, olhe, já agora, como estamos na época de empréstimos, podia-me ceder a sua namorada por um minutinho, prometo que a devolvo inteira. Por favor, não me chateiem quando estou a gozar um momento de introspecção. É o mesmo que ir perguntar as horas a um tipo que está há dois dias em meditação sobre um rochedo áspero. Claro que dá bronca, dá barraca, soa o gongo para iniciar o combate.

Vou na estrada, apressado, tenho uma queca para dar daqui a vinte minutos, a polícia faz-me paragem, e eu não tenho outro remédio senão obedecer e chamá-los à razão em Si bemol.

Acham isto bonito? Dá vontade de rir? E se fosse convosco? Havia de haver para estes casos uma sinalização de prioridade. Tipo, quatro piscas e um lenço vermelho de fora do carro para alertar os outros veículos, «desviem-se que tenho pressa para ir dar uma queca». Assim, nada disto acontecia, e chegávamos a tempo.
Perdi de dar uma por causa de uns senhores agentes que me fizeram o favor, e já que estava o tempo fresquinho, mostrarem os seus talentos vocais a duas vozes.

Que seca! Claro que fico amargo, pimentão, tal como estarmos apertadinhos de fazer xixi, já com as calças em baixo, (ou a maneira aberta, depende do usuário) e alguém nos diz, pá não podes fazer aí. O que fazemos? Apertámos a pila e vamos com ela para outro sítio mais apropriado? Humm, não me parece. Há alturas que interromper é um castigo equivalente a ter de adormecer com a voz do Cláudio Ramos ou assistir a um seminário sobre como matar-ratos-e-afins-à-base-da-leitura-de-textos do Miguel Sousa Tavares.



O coito interrompido é outra das broncas. Quem manda interromper, o pai dela, alguma lei de Fev. 1989? A gente ainda está a fazer e já está a pensar em interromper? Onde é que isto chegou?



- E quê, fizeram amor?



- Não, pá, foi coito interrompido.



- Tchiii!



Por que é que ninguém interrompe um padre a dar a missa? E quem tem coragem para interromper um bombista? Ir perguntar-lhe as horas ou convidá-lo para um cafezinho antes da explosão. Evidente que não. Ora, se o homem está concentrado naquilo, a pensar nas 75 virgens, só um idiota é que poderá fazer essa desfeita.



Interromper sai caro, por exemplo, em plena guerra, bombas a cair em todo o lado, disparos, até que alguém se lembra de interromper a guerra. Já imaginou o quanto perdia os fabricantes de artilharia pesada? Os médicos a ganhar sem fazer nenhum, os empreiteiros, as funerárias. E que tal um maestro parar meio minuto de dirigir a orquestra para coçar no traseiro. Não sei qual seria o resultado, mas posso palpitar que ia dar merda. Portanto, peço caridosamente que não me interrompam sempre que estiver a escrever uma crónica, é que, desse modo, perco o controlo da situação e viro o mais profundo ateu, se vocês não acreditam, perguntem às moscas que quando educadamente lhes mandei sair e elas não deram ouvidos. Palminhas!

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A sorte protege os audazes



É isso, a sorte protege os audazes! Zeca é um sortudo, há quem diga que desde nascença a sorte o acompanha, e vá-se lá saber porquê, com tanta gente a precisar de uma pontinha dessa sorte, logo tinha de calhar a um gajo que à sociedade nada dá.
Ele é roupas caríssimas, boas jantas, bom mulherio, não falta nada, a imaginação quer, a imaginação tem! Ah, e solteirinho da silva, como quem diz, sem horários para cumprir, sem horas de se pôr a pé da cama, num colchão que imita o mar alto ou sereno, dependendo da companhia; a primar pela biodiversidade no amor, graças ao seu sorriso pronto e umas lecas chorudas a espreitar da carteira. Há quem diga que tudo tem um fim.

- Esse Zeca abusa da sorte que lhe deram.

Saibam que os comentários nunca lhe destronaram a maneira de ser, pelo contrário, de dia para dia a sua exuberância duplicava e, para confirmação, oferece mais um pechisbeque à companheira de um qualquer fim-de-semana. Os dias consomem-se lentos mas rápidos, é a lei da vida. Da primavera ao outono vai um piscar de olhos. Os anos não poupam ninguém, nem um santo sequer, quanto mais ao Zeca que, de wisky em wisky começou a fazer estragos no fígado e arredores.
Mas aquela feijoada à transmontana…bem lhe avisaram para ele não se armar em guloso. Foi a morte do artista, como quem diz, a feijoada caiu-lhe no estômago que nem uma bomba, e daí até cair numa cama foi um tirinho. O elevar das mãozinhas a Deus era agora uma constante, ah, pois é, na hora do aperto até os surdos ouvem dizer que.

Neste caso, de nada valia o dinheiro para as suas horas de sofrimento e caganeiras consecutivas, nem os remédios nem os médicos que iam lá a casa.
Esgotou todas medicinas, desde a tradicional às orientais, alternativas, chás disto e daquilo, canjinhas, ninguém sabia detectar a raiz do mal que o fazia borrar-se por ele abaixo. A bem dizer, não se controlova, parecia um velhinho acamado à espera da hora agá, ao ponto de ninguém poder entrar no quarto que aquilo fedia mesmo. Coitado do Zeca, quem o viu e quem o vê! Nem o pó  para as assaduras  aliviava  a dor. Mas, ao contrário deste seu azar que lhe cobrava vermelhões nas naldegas de tanto alapar na sanita, muitas amizades riam-se afortunados por saberem tal desgraça.

- É bem feito!

A coisa parecia não dar tréguas, aliás, da noite para o dia as suas crises intestinais, cólicas, aumentavam e, os ais e uis, eram cada vez mais audíveis pelo quarteirão, que a vizinhança já se atormentava com o berreiro que o homem fazia quando a altas horas da noite se levantava a esforço com uma mão à frente e outra atrás numa de evitar uma outra soltura repentina, mais uma desgraça. «Ai meu Deus isto, ai meu Santantoninho aquilo, quem me acode desta desgraça, ai que eu vou morrer na merda!»


Como tudo o que comia o estômago não aguentava um nadinha e mandava logo pelo canal rectal abaixo, a sua magreza começou a notar-se a curtas vistas. Fraquinho como tudo, só pele e osso como os pretinhos de África. Os seus olhos a negar a vida, dores e mais dores de barriga fizeram com que o pior acontecesse: Zeca apagou-se sem avisar, sem dizer adeus ao mundo.
A notícia foi recebida com um certo desgosto, afinal de contas Zeca era um cromo que faz falta à caderneta lá da aldeia. Os preparativos do funeral foram tão rápidos que nessa mesma tarde puseram-no a corpo presente lá na morgue com umas quantas carpideiras contratadas a chorar pela alma do defunto. O funeral estava previsto sair às cinco, mas por razões desconhecidas teve de ficar adiado para a manhã seguinte.


Coube às carpideiras tomar conta do corpo nessa noite, aproveitando elas para colocarem as suas cuscuvilhices em dia, sobre este, sobre aquele que anda metido com a filha do Zé dos melões, quando, devia ser umas duas da manhã, pelo relógio da torre, o sono tomado de assalto, as velhas, que ressonavam como tractores, algo de estranho começou a passar-se ali na casa mortuária. Um cheiro tamanho fez acordar umas das velhas que tem o nariz bem alerta, e esta, sem freios na língua, tratou logo de acusar a amiga por ter soltado tal atrevimento. A acusada, no momento em ia dizer que tal remate intestinal não fora por ela rematado, outro par de peidos fez estremecer o lugar.


- Ai minha nossa! – Exclamaram as velhas carpideiras em coro. Mas, assim que se aperceberam que tais estrondos haviam saído lá para os lados do morto, deram à sola como gente grande.


Nisto, sem manobras de diversão, o morto, ou melhor, o ex-morto, o ressuscitado Zeca, graças á libertação dos gases acumulados, mais o alarido provocado pelas velhas, abriu os olhos, deu conta de si, viu que estava dentro de um fato escuro, e por sua vez dentro de um caixão, e, ao abrigo da sorte e da fé, agora bem mais aliviado da tripa e livre do mal, disse estas palavras:


- Olha se eu não soubesse assobiar pelo cu!




segunda-feira, 2 de agosto de 2010

amor com amor se paga

De repente tudo se ilumina. As ideias brilhantes fazem destas coisas. Se Deus quiser deixarei de andar pelas ruas a colar cartazes e terei todo o tempo do mundo para dedicar-me ao sol.
Sabem, aqui entre nós, há uma velha rica que me quer ver deitado. É como dizem na minha terra, mete-se um saco na cabeça, fecha-se os olhos e de resto é por amor à pátria. Ela está perto dos oitenta e contenta-se com umas festinhas bem leves.
Pode ser ordinário mas o resultado final será extraordinário: ficar com a fortuna dela: duas bouças, três automóveis e uma conta bancária bem abonada, recheada de zeros à direita. Ainda por cima sem parentescos. De resto, é só esperar que lhe dê um enfarte, uma trombose bem dada que a leve.

Há quem não considere mas, estar com ela uma vez por semana, a dar a dar, é já uma proeza, meritório de troféu e tudo. Claro que estou como o cangalheiro quando diz, não quero que ninguém morra, mas quero que a vida me corra. Exactamente assim. Basta ela assinar que eu pisgo-me. Até lá, tenho de fazer-lhe as vontadinhas, um mimo aqui outro mimo acolá, lavar os tachos, preparar a janta, ir ao supermercado, levá-la ao doutor, etc.

Nos entretantos a Judite ligou a dizer que queria voltar, que as saudades são muitas. Caraitas, logo agora que isto corria bem a Judite havia de aparecer do nada, cheia de projectos. Isto mal dá para uma quanto mais para duas. Mas enfim, disse-lhe, pronto, está bem. Para não meter as duas ao barulho disse à Judite que a velha era a minha avozinha de Trás-os-Montes, por parte do meu pai. Ela ficou taralhoca, pois sempre julgou que essa tal minha avó tinha falecido de congestão. Passou.

Tinha a minha vida partida em três, cuidar da velha, da Judite e eu próprio. Mas alertei-a:

- Judite, sabes que jogo à bola às quintas-feiras? O médico aconselhou-me a ter mais actividade física, sabes como é.

Ela torceu um pouco o nariz, pois melhor do que ninguém sabe que o meu talento é mais para bilhar de bolso. Passou.
E pronto, negócio feito. Às quintas-feiras saía de casa com o saco de treino às costas numa de disfarce e ia direitinho numa velocidade de ponta para a casa da velha por umas horas. O tempo de a pôr a sorrir. Depois vinha embora com umas boas notas verdes no bolso.
Quando chovia emprestava-me o seu chevrollet e, por saber que a vida é curta, aproveitava a chance e ia exibi-lo diante dos amigos, que se ferravam todos de inveja. Até a Judite sorriu, quando lhe disse que ganhara um segundo prémio na lotaria. Bendita hora. Uma vez mais festejámos em cima da máquina de lavar. Aliás, é para isto que serve um tambor avariado na sua louca trepidação: ajudar à festa.

Durante semanas andámos de restaurante em restaurante a provar bons vinhos e a apanhar pielas. O amor finalmente estava a entranhar-se em nós com uma nódoa num pano que não se quer lavar. A felicidade nunca tem palavras a dizer. Fixe. Os meus amigos voltavam um por um. É bom ter amigos assim, que vão, mas voltam. Para bem era mesmo a velha bater a caçoleta. A espera, neste caso, tinha consequências malignas para o meu corpinho cinco estrelas. A velha estava a exigir muito.
Mas, como a bem dizer era pago ao minuto, sujeitava-me, como se fosse o salvador do mundo. A velha, além da quinta-feira, quis mais um dia para si, argumentando que a solidão lhe esfriava os ossos e os sonhos. Lá tive eu, Jorge da Conceição, licenciado em solidões, chegar-lhe calor à pele.

- Judite, terça, começo as aulas de bowling.

Nova estranheza para os ouvidos da Judite, pois melhor do que ninguém sabe que sou contra isso de andar a meter dedos em buraquinhos.
 Às segundas ando no Karaté. Nos entremeios perguntava-me:

- Ó Jota Cê, e quando trazes cá a tua avozinha?

- Um destes dias, um destes dias.

A melhor forma de a fazer esquecer da existência da velha era prendá-la com roupas novas e colares tão reluzentes que faíscassem aos olhos das amigas.
Só que a cabrona da velha era danada, estava imparável, e não havia mal que lhe pegasse, nem as gotinhas de lixívia na sopa, nem as cambalhotas arriscadas. Comecei a ficar fraquinho de ossos, a beber Danacol’s a ver se a coisa melhorava, mas nada, de dia para dia ia desaparecendo como um bife no prato de um etíope.

Deixei de poder dar assistência. Vi-me grego. Isto de trabalhar sem fazer descontos dá no que dá. A assistente social lá quer saber de mim. A velha deixou de dar o respectivo, até o chevrollet foi-se. A Judite estranha tudo isto, estes repentes todos, hoje tudo, amanhã nada. Anda às voltas pela casa, a pensar no pão que vai amassar, a arrancar conclusões às cabeladas, a trocar as jóias por caganifâncias. No fundo amámo-nos como dois patriotas em terra alheia.
Outro dia, ligaram cá para casa. Ela atendeu e falou o que tinha a falar. Foi uma conversa curta. Com muitos hum hum hum da parte dela. Sem perguntar quem era, a Judite fez o obséquio de matar a curiosidade com um tiro no coração mas a salvar a barriga e o futuro:

- Imagina só. Era o meu avozinho!

quarta-feira, 21 de julho de 2010

a crónica mais bem educada do mundo

Esta crónica é a crónica mais bem-educada do mundo. Dela não ouvirá um caralho sequer nem tão-pouco um filho da puta de um palavrão como muitos cronistas gostam de exibir perante os seus amados leitores.
Esta crónica, pelo contrário, tem classe, tem charme, tem a distinta lata de não falar mal de ninguém, nem daquele urso que foi fazer queixa de mim ao senhor da adega, nem daquele outro que anda a dizer que fui eu quem inventou a lâmpada.

Porque esta crónica é diplomada em boas maneiras, à inglesa, não é como o meu primo António que só diz merda da boca para fora nem como o camelo do Luís que é um atrasado mental.
Não, de jeito nenhum, aqui não encontrará nada de imoral nem prática de maus costumes. Cada frase é pensada ao milímetro, tem um quê de poesia vindo dos canos. O estimado leitor merece o melhor do melhor, pois é para si que dedico a minha vida inteira. Esta crónica antes de ser editada, fez um curso de etiqueta, andou pelo jet7 a aprender como se come à mesa, tomou café com ministros, viu filmes do Noddy e do Rucca. Portanto, não haverá defeito nenhum a apontar. Mas aviso já, o primeiro que levantar um dedo, um dedinho só para fazer queixinhas aqui e acolá, está automaticamente fodido comigo, e saibam desde já que tenho amigos ciganos e alguns são maricões com vontades intrínsecas.

Não me levem a mal esta minha diplomacia, é que, sabem, custou muito aqui chegar, passei as passas do Algarve a pensar que era coisa de se fumar. Mas fodi-me, perdão, lixei-me. Esta crónica é feita com muito vinho mas não chega a dar bebedeira. É uma espécie de amiga dos pobres. Praticou meditação, esteve longas horas à conversa com a madre Teresa de Calcutá a aprender a ser solidária, evitou ouvir discursos políticos para não se deixar influenciar. Logo, por aqui tudo é claro como o vinho, leve como as pedras que carregamos para o monte da felicidade. Nada aqui é contraditório, pode-se arrancar daqui toda a verdade que ainda ficará alguma de sobra para uma boa dúzia de mentirosos. Com certeza que já reparou desde o início que esta crónica tem uma leveza tal que é capaz de fazer o mesmo efeito que o Viagra. Sim, foi educada à nascença, a ter boas companhias, a evitar drogas pesadas, as leves é só em festivais e ressacas só de quinze em quinze dias e vésperas de feriados e aniversários de amigos e bodas. De resto, sempre branquinha como o aço, virgem como eu, como tu.

Esta crónica irá entrar no Guinesse, já que, é a única no mundo que, de princípio até ao fim, não diz um foda-se, sequer. Isto é obra! Pois o respeito é bonito e eu gosto. Além de que, o director do jornal mandava-me já para o sindicato se acaso me pusesse aqui a disparar palavrões a torto e a direito. Também, porque tem de ser atenção às criancinhas, ter ética, disciplina, e não andar cá com palermices. Aliás, é por isso que o país não anda para a frente, muito devido a esses escritores de meia tigela que aproveitam o espaço de um jornal para mandar umas caralhadas, armados em entendidos, quando, no fundo, não percebem é um boi. Sou totalmente contra. Abnego qualquer tipo de discurso difamatório. Aliás, eu próprio seria o primeiro a atirar a primeira pedra. Sou dado ao respeito e, por questões que agora não interessam, jamais deixaria que as minhas filhas lessem uma coisa assim. Esta crónica sim, podem ler, pois toda ela é elegante, não de silhueta, mas na forma com que veste saia e não mostra o rabo. Por que tem educação, tem um pai que impõe regras duras, tem catequese de manhã à tarde e à noite. Que é isso, vagadundagem, não!, crónica minha jamais dormirá fora de casa. Nada de mensagens de telemóvel a partir das 21, ela é aqui, junto à televisão, a bordar, a fazeres os deveres e bolos de chocolate.

As minhas crónicas estão proibidas em sair com as crónicas do José torres que só falam em poligamias e stroganoff, gostam de pintar as unhas e têm a língua afiada para o que der e vier. O Zé que me desculpe mas, amigos amigos, crónicas à parte. As minhas crónicas nunca na vida irão alugar filmes de maiores de dezoito, nunca! Por que as minhas meninas crónicas, felizmente são de todas as mais bem-educadas, não andam no coro mas é como se andassem, não frequentam associações recreativas mas isso é por ordens minhas. Por ter estas crónicas assim, educativas, romanescas, estudadas, há gente que daria o cu por elas. Foi preciso muito para chegar a este ponto, tirar-lhe a pele e o caroço e só aproveitar o bom, portanto, despeço-me com um obrigado e até hoje a oito dias, isto é, se até lá não me apontarem uma crónica de 9 mm à cabeça.

terça-feira, 20 de julho de 2010

O poeta

Só de vê-lo dá dó, o Joselito, sessenta quilos de pura amargura, olhos desidratados que nem sequer dão para chorar uma puta de uma lágrima, uma postura que nem para cabide serve, ginga pelas ruas, vende poemas avulso e, da forma como está crítico o país, alguém quer lá saber de poemas para alguma coisa. Diz que está a mando de Deus, servir os homens com poesia que os farão calar e escutar a voz da voz do senhor. Os putos são ranhosos e atiram-lhe pedras à cabeça até haver uma que a vá rachar. Os senhores das boutiques correm-no dali para fora com um gesto hitleriano. Ele obedece e vai para outro lugar onde possa escrever e tentar vender um poema ou outro. Pelo que sei, a poucos dá a curiosidade de saber o que ele escreve num papel que encontrou no chão. O Joselito é uma paz de alma, come e bebe do que lhe dão, como se fosse um cão de rua a quem se lhe atira os ossos. Neste caso, para sobreviver, tem de ser mais rápido que os cães. E ir de focinho ao destino.
Conheci-o há dias e falei um pouco com ele sobre o dia-a-dia, sobre as suas palavras que, ainda que olhando para mim, ia escrevendo no papel tão magoado quanto ele.

- As pessoas são insensíveis, mano. Ninguém liga puto ao que escrevo
- É, mas tens de ter calma, as coisas boas virão ter contigo, mostra-me aí o que estás a escrever

O dia é uma arte em que ninguém pôs a mão
E a noite é o deus em que iremos desaguar, um dia

- Interessante, meio filosófico. Tens talento, pá!
- Ninguém quer saber de talento para nada, mano, as pessoas só querem é dinheiro para grandes comezainas e orgias com os seus próprios egos.

Falámos durante bons minutos e foi bom saber que ainda existe pessoas que falam das coisas com palavras que se entendam e que, mesmo do avesso, conseguem falar às direitas. Troquei o poema por dois cigarros. Ele preferiu assim. Fiz-me à vida antes que a vida se fizesse a mim, a procurar onde cair vivo, onde o silêncio faz falar. As contas são várias, como são várias as contas que tenho que dar para pagar as contas. Não adianta ser ladrão porque corro pouco e tenho as unhas dos pés encravadas. Deus não me apurou os sentidos. A helena aproveitou-se da minha fraqueza e está a apanhar sol nas Caraíbas com um badameco qualquer, a contar notas de cem e a descascar camarões, que é o que ela sabe melhor fazer. Sou, a bem dizer, um rouxinol sem canto. Os dias assim andam, nesta correnteza mal distribuída, uns têm tudo, outros têm todo o nada. Limpo umas chaminés em part-time e valha-me nosso senhor Jesus Cristo o quanto isso me ajuda para fazer andar a carroça e ter alguma coisita no prato.

Passeio no largo mas quem anda ao largo sou eu. Inventar os dias é muita areia para a minha camioneta. O país quer-nos pequeninos, caladinhos como um biscoito. De chaminés estou por aqui. Sonhar alto é uma ameaça, e já se sabe porquê. Não estou aqui para explicar nada. Aliás, nem sei se estou aqui ou na Noruega lá no meios dos bacalhaus a fazer discursos sobre os reis magos. Cansei de estar cansado e fui à procura imediata do Joselito numa de lhe pedir um poema de fé. Não o encontrei. Ao que parece sonhou com a sua morte e realizou-se. Fiquei tolo porque os sinos não avisaram nada. Mas também não admira, porque, aos pobres, atiram-se para a cova de qualquer maneira, e já está.

A rua já não é a mesma rua. É um lugar sem notícias, sem estômago para adorar. Sentei-me onde o Joselito se sentava e pus-me a escrever umas quaisquer memórias que me vinham à cabeça feitos espadachins. Alguém atirou uma moeda que no chão cantou. Ficou a rodar bastante tempo. A moeda reluzia, parecia de prata mas não era. Era uma moeda que alguém atirou em troca do que estava a escrever. O sol batia na cara do fulano. Ao início parecia um anjo medonho mas depois ficou mais nítido. Era o poeta.


- Então mano, por aqui?
- É verdade, a vida dá muitas voltas. Pensei que tinhas morrido, pois disseram.
- E morri. Agora sou adjunto de Deus.
- Não me faças rir, pá. E eu sou quem, a Gioconda?
- Não mano, tu és o próximo a ir. É que Deus está precisando de poetas lá em cima...

Levantei-me, e fui limpar chaminés.

sábado, 17 de julho de 2010

"é impossível ser feliz sozinho"

Todos temos um sonho, um motivo para sonhar, nem que seja do tamanho do mindinho. Sonhar faz bem à saúde e evita-se remédios. O médico aconselha-me e diz-me, está doente e não tem dinheirinho para remédios?, então vá sonhando! Toda a vida assim, a adiar a própria vida. Eu, por exemplo, sonho em ser burguês, receber o pequeno-almoço na caminha, servido por vinte e sete virgens. O difícil não é o pequeno-almoço na cama nem as vinte e sete mulheres. O difícil é apanhá-las virgens. No entanto, o sonho faz-nos correr, mas devagar, devagarinho, como se equilibrasse-mos o mundo redondo na cabeça. Por isso vou pelas ruas, como que procurando a minha vida dentro de uma garrafa de Coca-Cola, mas claro que preferia que fosse dentro de uma garrafa de aguardente. Pelo menos conserva melhor.

Todos cá no bairro sabem que a Rita trocou-me pela Ângela. Vivem as duas num apartamento em Azeitão, ao quilómetro catorze. Disse-me não haver espaço entre as duas, e eu que até sou magrinho como S. Tomé. Esta modernice trouxe-me pensamentos antigos. Vou na minha com o olhar sobre os pombos-correios, não os pombos que voam, mas aqueles gringos que traficam pó e estão sempre com muita pressa de ir a lado nenhum. Os pássaros deliciam-nos com os seus bailados e as árvores, ah, as árvores, matam-me a fome com as suas laranjas nunca sulfatadas. Há "canos" que não via a Roberta e vê-la agora ali, à janela, à fresca, os peitos empinados, lançando daqueles olhares de chantilly.

A Roberta tem como ganha-pão a reforma do marido que já morreu. Dizem que foi a fazer. Não sei, não vi, logo não posso dizer. Também dizem que o luto a converteu numa mulher frígida, negando todos os prazeres da carne. O que é pena, pois nesta hora estaria disposto a fazer-lhe esquecer o luto com uma ou duas brincadeiras daquelas que eu cá sei.

Só que a Roberta, apesar de ser boa comó milho, a todos dá para trás. Consegue fazer bem a gestão do luto e do prazer. Lembro que em puto havia muitos “pontas-de-lança” que gostariam de a ter comido. Chegou até ser o sonho de muitos e foi tema durante anos quando nós, putos em fase de descoberta, nos juntávamos no adro a contar experiências e a comparar tamanhos. O máximo que consegui foi pôr-lhe a mão no joelho esquerdo.
Mas só o Hilário é que a levou. Sim, o sarapintado, com aquele arzinho de pastel de nata e tal mas que dentro de um Porshe já se sabe que qualquer um faz proezas. Ainda assim, com o sol a meu favor, fui buscar um pouco de latinidade ao fundo do romantismo e mandei-lhe um daqueles assobios a imitar os passarinhos de água que se vendem nas feiras. Não sei como aconteceu mas aconteceu. O assobio fez-lhe despertar a atenção e, a Roberta, lá no recorte da sua janela, lançou sobre mim os seus olhos meios achinesados, causados pelo rímel. Acenou-me. Eu acenei-lhe. Lançou-me um beijo. Eu lancei-lhe dois. Ela sorriu. Eu exibi a cramalheira, todo o piano bocal.

Sem rezar muito, caminhei em direcção à porta de entrada que se encontrava aberta. Em cada passo ia-lhe despindo a roupa mentalmente, prognosticando o bom que é experimentar a qualidade das molas do colchão da cama dela. Espero que as histórias que ela contar sejam rápidas, já que, de cada história que ouvir, só quero retirar aquela página em que mete forrobodó, pensava eu feito manjerico.

Fui subindo os degraus em leveza de bailarino. O coração batia como se despertasse de um coma profunda. O meu olhar texano ganhava expressão qualitativa. Na sala notei que no interior da casa-de-banho havia uma certa agitação. A Roberta falou:

- Querido, aguarda aí dois minutos, estou a lavá-lo, bem lavadinho.

Querido?! Se bem me lembro, da última vez que me chamaram de querido foi um vaivém do caraças. Aguardei então os dois minutos, abrindo asas à imaginação, ou melhor, longas asas. Num olhar sobre a estante de livros apanhei lá pelo meio o do kamassutra e, aproveitando a espera, fui apurando o meu sentido técnico de algumas posições ginasticamente circenses.

Finalmente a Roberta, em robe branquinho como a neve, cabelos ao vento. Atrás dela, um caniche tão lavadinho que parecia que ia à televisão. Por momentos fiquei apático da cintura para baixo.

- Ó Bilinho, chamei-te aqui porque estou com um pé partido e não me convém andar (Olhei para o pé engessado e confirmei). Se fizesses a gentil gentileza em levar o meu Bolinhas a fazer necessidades aqui ao jardim em frente…

O meu silêncio foi um sim. E ela logo meteu a trela no cão e passou-ma. Tive uns pensamentos meios canibalescos mas passaram-me num speed. Desci à rua em direcção ao jardim. Acendi uma ponta de cigarro. Olhava o cão, todo perfumado, escovadinho, ar de quem não se preocupa com nadinha, pensando para comigo coisas infinitas e sem nexo. O cão a dar-me uma coça em felicidade. A Roberta à janela a arejar. Desta vez sorria mais para o estupor do cão do que para mim. Eu a sonhar coisas reais, a tentar entender como é que é possível alguém ser feliz sozinho.

Murmurei:
- Ó Bolinhas,  não me digas que és tu quem… (o cão ladrava fininho). Esquece, deixa para lá.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

história mal contada

Aquele que tira proveito do azar é um sortudo. A bem dizer é um filho da mãe com probabilidades de um dia se tornar santo. Não sei de mim às sextas-feiras à noite. Há quem me veja a beijar o gargalo de uma garrafa de gim, outros apontam-me como uma miragem. O certo é que estou liso e os juros a cada dia ganham mais erecção. Neste país, quem dá um peido sem justa causa, apanha no mínimo dez anos de cadeia. Havia de haver um livro de reclamações quando o sistema nos toma. Somos um pouco tímidos a pensar na palavra liberdade. Os dias são contados com uma máquina de contar notas. A justiça tem miopia. O país tem o fígado lixado. O sonho é onde me ponho a jogar bilhar numa mesa sem buracos. Sou ateu às segundas-feiras e pedagogo às terças. Às quartas ponho-me à distância, às quintas é só para contar aos amigos, às sextas já falei e aos sábados… bem, aos sábados, é dia de ressuscitar.

*


Liguei para a Naida, filha de um bacalhoeiro que em tempos tive uma relação descomprometida, sem grandes quimeras, para que amanhã traga os fios e pulseiras de couro à qual tem uma habilidade única. Aliás, a Naida, onde põe as mãos, faz obra. Mas em tudo!

- Aparece amanhã no largo. Vai haver muito otário. Anda que eu ponho as bejecas.

Não a percebi muito contente pois apenas respondeu, hum hum. O que é de estranhar visto que a Naida, além de ser toda para a frentex, é despachada na língua. Aliás, que me lembra, em vários sentidos.

Apesar de tudo, na manhã seguinte lá apareceu, com a sensação que anda movida a remédios multicores mas lá apareceu, com a sua bijutaria feita na paciência do lar, a três pancadas mas de grande valor artístico, afim de, quiçá, ganharmos uns cobres e tirarmos a barriga de misérias com uns enlatados. Tentei animá-la contando umas piadas sobre padres mas nem assim.
A Naida estava num precipício à qual eu, pelos vistos, não podia dar a mão. Só à custa de dez cigarros, 40 minutos depois, após montada a banquinha com os artefactos de pulseiras, brincos, piercings, colares, é que falou: - O meu velho, pá, apetecia-me matar o meu velho!

Depois foi um desfile de palavrões e de sentimentos altos. Da sua voz, além de raiva, salivava bastante. Por isso dá para entender o tamanho da desconsolação.
Pelo que entendi, o velho andava-lhe a foder a vida, a obrigá-la a vender-se por vinte paus para matar a sede de vinho. Punha-a numa recta de uma estrada secundária até que chegassem clientes, e depois o dinheiro, era, bota para cá!

- Naida, deixa, que se apanho esse cabrão dou-lhe uma puta de uma coça que ele nem vai saber de que terra é!

A Naida lá fez um sorriso pela minha participação no seu descontentamento. Inclusive, disse-me que eu era um gajo porreiro. Que ainda havíamos de ser felizes lado a lado. Por obra da nossa cumplicidade, nesse dia o negócio corria cinco estrelas, os nossos ânimos aqueciam quer com olhares quer com um pouco de vinho de porto. O sol só a nós pertencia. É bom viver ao pé de mar e fazer-lhe cócegas na areia, pensava eu na minha. Ter um destino de fundo azul com umas nuances esbranquiçadas.

Sentado, à velho cigano, observava a Naida, e imaginava-nos aos dois com uma porrada de filhos, a puxar-nos para o pátio, para o baloiço que prometi mas que não me lembrava. Ah, o sonho de haver sonhos. A música do Bob Marley a fazer dançar o milho. E a Naida, enquanto entrelaçava três tiras de couro para fazer uma pulseira, sem nada saber destes pensamentos, a sorrir para mim. Como a dizer sim.

Nesse dia fizemos uma pipa de massa. Ela estava inspirada e de vez em quando soltava uns pregões que, embora fossem meios alucinados, faziam o mesmo efeito de chamariz. Só um inglês levou duas pulseiras e cinco anéis góticos e pagou com uma nota tão grande que me senti pequeno. Acarinhei a nota. Pois era a primeira vez que uma daquelas me passara pelas mãos. Estou mais habituado a chapas.

A cena do velho dela não me saía da cabeça. A minha vontade era de, enfim. Apenas espero que o destino lhe faça estourar os tomates e os miolos. A ele e a gente como ele.
Mas o dia não acabou assim. Deus não sabe fazer contas de cabeça.
Na hora em que arrumávamos as trouxas, o velho dela, como um cacho, a pedir explicações à filha do porquê não estar em casa a fazer a janta, e ainda por cima a insultá-la de cima a baixo.

O tempo parou e, numa fé resvalada, a Naida bateu o pé, respondendo-lhe com a mesma moeda, filho da puta, ordinário, chulo, vai-te embora, pá! O velho estava convencido que o mundo apenas a ele pertencia, e avançou para tentar algo, numa de puxar os colarinhos à paternidade. Aí, xau, como se diz lá na minha terra, foi como quem me acorda com um balde de água fria. Entrei em cena e, num soco só, estendi-o no chão feito cão a esguichar sangue pelo focinho. Bastou um soco bem dado para o velho ficar enroscado em si mesmo e a dizer mal da sua vida.

A Naida aproveitou e cuspiu-lhe em cima com uma vontade que só vista.
Pessoas vinham-se aproximando e foi uma confusão dos diabos. Parecia que a maré ia subir em segundos.
Não sei quantos minutos depois, do nada, apareceram dois bófias à paisana que, sem mas nem meio mas, puseram-me as mãos atrás das costas, algemaram-nas e, com uma fusca apontada à minha cabeça, disseram, anda que destas já não te livras.

Sei que virei-me para a Naida aos gritos: - Faz qualquer coisa, Naida, diz o que esse velho te anda a fazer, diz, Naida!

Mas a Naida estava em choque, a chorar acriançadamente. Seguramente a ganhar coragem para intervir e apontar o dedo ao real bandalho que, na sua manha de velho sabido, chamava-me de comunista, cão, merdento, para se fazer de vítima e sensibilizar os de fora.

Os bófias corpulentos não tiveram fé em porra nenhuma e, à força da força, tentavam enfiar-me para dentro do carro patrulha a todo o custo. Desse por onde desse. E eu a dar luta.

Nesse instante o sol queimava-me as vistas, os sons da multidão que assistia ao aparato estavam dentro da minha cabeça em ecos contínuos, mas a distanciarem-se.
Eu continuava a pontapear o ar, a espumar ligeiramente para a camisola, de costelas magoadas, anestesiado na alma mas ainda assim sentindo que alguém me tocou de leve no cabelo, com um carinho inexplicável. Era a Naida. Sorri. Pois só ela me podia safar e contar tudo à polícia sobre quem é afinal o mau da fita, antes que o caso virasse para tribunal, já que, é sabido que por lá andam uns magistrados mortinhos por dar cabo dos inocentes, com vontade de enrabá-los a sangue frio, para que estes tomem o lugar dos filhinhos do papá que andam para aí a cheirar.

O carro da polícia estava pronto para arrancar, eu sentado no banco de trás, curvado para a frente, respirando forte e com um fio de saliva a sair do canto da boca a denunciar cansaço, quando, a Naida, pálida como tudo, aproximou-se da porta que tinha o vidro meio aberto e, em palavras a perderem a vida, disse-me assim:

- É meu pai, Silver, entende, é meu pai…é meu pai…





terça-feira, 22 de junho de 2010

Jesus vive em mim

A vida muda e, contra o tempo, não há ciência que nos valha.
Temos a cabeça cheia de merdas e, tal com um disco rígido de um computador, é preciso esvaziar. A velhice não é assim tão distante. Quando damos por ela, somos convidados a enfiar-nos dentro de um caixão. Por saber disto, só tenho objectivo em satisfazer-me. E ler. Verdadeiramente não sabemos o que cá fazemos. Andamos práqui a estudar ciências e comportamentos que nos atrasam mais o divertimento. Sorrir é melhor que uma sande de bacon. Gosto de paixões à primeira vista. Sinto que é das coisas mais verdadeiras que anda por aí. Depois tudo se acaba com insultos, mas isso é outra história. Afinal de contas, somos animais insatisfeitos. Gostamos de bons cérebros, pessoas que pensem bastante, mas no fundo gostamos mais é de um bom par de mamas. Gosto de assistir a grandes exibições pornográficas. Faz-me sentir vivo. Não existe presente, tudo é passado, mesmo o pensamento, pois actualiza-se a cada instante. Deixei de ser burro e despedi a Suzzi de casa. Disse-lhe que era por falta de complementaridade. Ela não percebeu. Só percebeu quando falei grosso à vocalista de Death Metal. Estava farto de trabalhar para ela, de ser escravizado até à medula, a mantê-la, a ela e às suas manhas e manhosices a troco de umas quecas superficiais. Esgotou-se-me o bom senso e dei a vez a um tipo duro, a centímetros da explosão. Fiz um contrato com a solidão por ano e meio e andei assim, só e destemido, na procura do meu âmago. Aproveitei esse espaço de ausência de um deus para escrever o meu próximo livro dedicado à quadratura do amor. De uma mulher envolvida em pecados amorosos com poetas. Foram trezentas páginas a imaginar fetiches e diversas formas de amar. Dei o litro pelo não litro. No percurso dos dias ganhei cinquenta e sete depressões mas no fim de tudo saí ileso que nem um ratinho.
Hoje estou livre para amar, mas falta-me aquele movimento rápido de cabeça para ver quem passa pelos meus olhos.

Liguei para a Guida, uma cinquentona, de banhas transbordantes mas com bom presunto que tira qualquer um do sério, pelo que, para amá-la, é necessário fazer um seguro de ossos. Da última vez, vim de casa dela com a espinha num oito e agradecendo a deus não ter aparecido o jamaicano que com ela tinha ou tem uns lances furtivos. Um tipo bem abonado, karateca e motorista de traillers internacionais. Já estão a imaginar.

Ainda assim arrisquei e fomos tomar qualquer coisa à baixa. Falei-lhe do livro e, ao saber do tema, deu um sorriso convidativo que, diga-se de passagem, deu-me novas inspirações. Palavra puxa palavra, cerveja puxa cerveja, hora e meia depois, estávamos meios pifos, a trengar como pardais ao ninho. A Guida fala muito alto e o seu discurso é pouco bíblico. Falou-me das suas relações frustradas, das nódoas sentimentais, da cabeça rachada quando se opunha, dos gritos de socorro que ninguém escuta, etc. Ao que esta conversa deu azo para eu chorar. Pois com os copos fico um sensivelzinho de meia tigela, feito pudim. Abraçou-me com os seus braços fortes e senti que ali podia nascer qualquer coisa de positivo. Quem sabe uma luz. Apesar de ainda ser dia, pagamos a conta a meias e fomos, para não variar, para a casa dela. Logo à entrada, na parede do corredor, uma fotografia ampliada e emoldurada, do tal, a olhar de frente, como que supervisionasse tudo e todos. Assusta olhá-lo, ver aquela cicatriz que vai da cara ao pescoço que parece um pequeno mapa de estradas. Ter a imagem dele na cabeça não foi bom, baixou-me os níveis de testerona. Tirou os sapatos, desnudou-se e deitou-se no sofá a imitar uma leoa amestrada. Reparei aí que a Guida tinha uma tatuagem no fundo das costas que dizia: Jesus vive em mim. A televisão contava o caso do violador de telheiras. Lá fora uma chuva de repente. O jamaicano a mirar com os seus olhos fixos na fotografia. A Guida a pedi-las. Eu de repente, sem assunto. Com uma frieza infindável pelos ossos. O desassossego a ganhar volume.

Teve de ser, apanhei-a por trás e comi-a em tempo recorde (59 seg.), depois disso, arranjei uma desculpa esfarrapada e aprontei-me para bulir dali para fora antes que o azar me falasse ao ouvido. Mesmo na altura em que abro a porta para a rua, eis que sem ninguém contar, pois era suposto estar a atravessar a França, o jamaicano, perturbadíssimo, a claustrofobicar-se, a interrogar-se mentalmente a minha presença ali. A Guida apercebeu-se e, de lá de dentro, gritou:

- É o homem da luz, veio fazer a contagem ao contador!

O homem de pele tostada olhou-me de cima abaixo com gravidade, a tentar ser telepático, a querer provocar briga com o olhar, contraindo os músculos do pescoço, fazendo-os estalar, para intimidação, a deixar o mínimo espaço entre a parede e a porta.

Fiz de conta que não era nada comigo e desopilei com a ânsia de engolir um pouco de nicotina. Afinal de contas o mundo não pára nem dá a mínima chance para lhe amarrarmos nas costas e fazê-lo atrasar. Ele anda sempre à nossa frente e, uma coisa é certa, um segundo faz toda a diferença. E outra coisa: aquela tatuagem fez mudar a minha vida!

Enfim, o fim

Só não prego o evangelho pelas portas por falta de tempo e honestidade. Cada um deve comer pelas suas próprias mãos e ninguém tem nada que ir levar deste género alimentício à boca dos outros. Além de que, tenho mau feitio. Sou uma mistura de raiva com descontentamento.
Os caminhos foram feitos para caminhar, portanto, cada um que avance para o lado que quiser. Estou farto de que me venham com ideologias todo-o-terreno.

Só me deixo enganar pela verdade. A existência para mim é um pau de quatro bicos. Comer, beber, foder e depois escrever um poema é o meu lema. Acreditar é tornar-nos loucos e impacientes. Esperamos que a montanha cresça na mão de uma criança.
A Irene foi-se. Foi bom enquanto durou. Apaixonou-se por um cliente que lhe dava boas garantias futuras. E foi-se. E eu de novo à estaca zero. Aprecio os recomeços. Tenho a sensação de que a obscuridade se torna mais visível. Segundo a minha data de nascimento e hora, a astrologia diz tratar-se de uma ruindade.

Leio livros porque não há carne no frigorífico. Engana-se a fome e a porra da solidão. Há dias em que as noites são bem melhores. A sensação que tenho é que, se me cortarem as pernas, ainda assim eu corro, eu correrei para lá do que sou. As minhas qualidades são inqualificáveis.

Falo de mim porque à minha volta não existe ninguém. Eu só, neste quarto que fede a silêncio e sémen. Mesmo cá em baixo sinto-me no topo do mundo. A realidade é um sonho. E o sonho é uma história mal contada. Acredito em sereias mas elas não acreditam em mim. É um dilema, este, o de acreditar em livros. Para felicidade tenho o wisky barato. Para tristeza basta-me a sede constante. Meto ambas num saco e tiro à sorte. Hoje calhou-me a felicidade. Estou safo só de pensar nessa possibilidade. Ter costas direitas não significa que seja gente séria. Ouvi dizer que sou surdo e mudo. É preciso ser-se necessário.

Do que falo só há provas no que escrevo.
Sim e não são talvez.
Coragem é pensar.
Pensar é fazer florir rosas brancas num tabuleiro de xadrez.
A guerra começa onde termina.
Não apostes tudo no sim. Deixa fluir o sol. Eu amo porque conheço-lhe a dor. Daqui ali faz-se um filho.
À parte de tudo somos nada. À parte do nada somos outro tanto.
Tenho deus algures no coração do coração.
Tecto e chão são os meus melhores amigos. Sou triste e isso alegra-me. A minha posição no mundo é de guarda-redes. Só não vendo ideias porque não as tenho. Sou um presumível assassino da morte. Matei a morte.

Não pensar é ouvir-se. Fui Cristo e buda e não me lembro de mais nada e, a sensação que tenho é que ainda dói. Na fúria do mar alto o pensamento tem altos e baixos. Atrás de mim estou eu outra vez. Se o amor fosse digital, amaríamos em série? Felicidade é quando duas moscas batem palmas. Olhos nas orelhas não falta quem. Se a mentira desse subsídios, estávamos podres de ricos.

Juro que além da verdade só digo mentiras. Encontro-me perdido. Achei-me para me perder outra vez. A base de tudo é quem está lá em cima. Nada vezes nada é igual a política. O cigano rouba porque tem vergonha de pedir.
O homem é como a serpente, fabrica o seu próprio veneno. Grande é aquele que tem noção que há muito para crescer. A vida tem encontros imediatos com a morte.

Apesar de tudo foi só uma marca no joelho. Quem tem ferros sabe a tábua que isso é.
Deus alimenta-se de almas, logo, é guloso. No estreito de mim, alarga-se a dúvida. Se, só morre quem está vivo, então, só vive quem está morto. Alguém também é ninguém. Ninguém também é gente. Por vias das dúvidas estamos certos. O bicho come a carne do morto porque não há salgadinhos. É estranho eu não me estranhar.

É azul o verde pranto. A mentira é como a loiça, parte-se, e não foi ninguém. Sonha que ainda a luz não vem abaixo. A vida inteira, a morte incompleta. O que envelhece é a luz. O bom seria partir para o regresso.
Às vezes acontece não haver acontecimentos. O exacto nunca soube como nasceu. O cavalo corre, não pela sua felicidade, mas sim pela sua ignorância. Sejamos menos cavalos. O silêncio é o melhor remédio para a idiotice.

A Irene foi-se embora. Podíamos ter sido felizes. Mas faltava o melhor: a poesia.
Estamos perto de chegar a lado nenhum. Roubar o pão não significa matar a fome. O amor é doce mas sem sexo torna-se amargo. Se não tens para onde ir, desagua num livro. Eu sempre soube que não sabia. Ama primeiro num segundo. Dinheirinho faz dinheiro, e sangue faz sangue.
No circo não fui mais que um simples homem-bala. Em tempos pertenci a um gang de poetas mal inspirados. Agora faço dança de salão numa folha branca. Na verdade, em termos legais e logísticos, estou em ponto-morto. Se a vida tivesse pedais eu podia ir mais longe. Enfim, o fim.