segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A sorte protege os audazes



É isso, a sorte protege os audazes! Zeca é um sortudo, há quem diga que desde nascença a sorte o acompanha, e vá-se lá saber porquê, com tanta gente a precisar de uma pontinha dessa sorte, logo tinha de calhar a um gajo que à sociedade nada dá.
Ele é roupas caríssimas, boas jantas, bom mulherio, não falta nada, a imaginação quer, a imaginação tem! Ah, e solteirinho da silva, como quem diz, sem horários para cumprir, sem horas de se pôr a pé da cama, num colchão que imita o mar alto ou sereno, dependendo da companhia; a primar pela biodiversidade no amor, graças ao seu sorriso pronto e umas lecas chorudas a espreitar da carteira. Há quem diga que tudo tem um fim.

- Esse Zeca abusa da sorte que lhe deram.

Saibam que os comentários nunca lhe destronaram a maneira de ser, pelo contrário, de dia para dia a sua exuberância duplicava e, para confirmação, oferece mais um pechisbeque à companheira de um qualquer fim-de-semana. Os dias consomem-se lentos mas rápidos, é a lei da vida. Da primavera ao outono vai um piscar de olhos. Os anos não poupam ninguém, nem um santo sequer, quanto mais ao Zeca que, de wisky em wisky começou a fazer estragos no fígado e arredores.
Mas aquela feijoada à transmontana…bem lhe avisaram para ele não se armar em guloso. Foi a morte do artista, como quem diz, a feijoada caiu-lhe no estômago que nem uma bomba, e daí até cair numa cama foi um tirinho. O elevar das mãozinhas a Deus era agora uma constante, ah, pois é, na hora do aperto até os surdos ouvem dizer que.

Neste caso, de nada valia o dinheiro para as suas horas de sofrimento e caganeiras consecutivas, nem os remédios nem os médicos que iam lá a casa.
Esgotou todas medicinas, desde a tradicional às orientais, alternativas, chás disto e daquilo, canjinhas, ninguém sabia detectar a raiz do mal que o fazia borrar-se por ele abaixo. A bem dizer, não se controlova, parecia um velhinho acamado à espera da hora agá, ao ponto de ninguém poder entrar no quarto que aquilo fedia mesmo. Coitado do Zeca, quem o viu e quem o vê! Nem o pó  para as assaduras  aliviava  a dor. Mas, ao contrário deste seu azar que lhe cobrava vermelhões nas naldegas de tanto alapar na sanita, muitas amizades riam-se afortunados por saberem tal desgraça.

- É bem feito!

A coisa parecia não dar tréguas, aliás, da noite para o dia as suas crises intestinais, cólicas, aumentavam e, os ais e uis, eram cada vez mais audíveis pelo quarteirão, que a vizinhança já se atormentava com o berreiro que o homem fazia quando a altas horas da noite se levantava a esforço com uma mão à frente e outra atrás numa de evitar uma outra soltura repentina, mais uma desgraça. «Ai meu Deus isto, ai meu Santantoninho aquilo, quem me acode desta desgraça, ai que eu vou morrer na merda!»


Como tudo o que comia o estômago não aguentava um nadinha e mandava logo pelo canal rectal abaixo, a sua magreza começou a notar-se a curtas vistas. Fraquinho como tudo, só pele e osso como os pretinhos de África. Os seus olhos a negar a vida, dores e mais dores de barriga fizeram com que o pior acontecesse: Zeca apagou-se sem avisar, sem dizer adeus ao mundo.
A notícia foi recebida com um certo desgosto, afinal de contas Zeca era um cromo que faz falta à caderneta lá da aldeia. Os preparativos do funeral foram tão rápidos que nessa mesma tarde puseram-no a corpo presente lá na morgue com umas quantas carpideiras contratadas a chorar pela alma do defunto. O funeral estava previsto sair às cinco, mas por razões desconhecidas teve de ficar adiado para a manhã seguinte.


Coube às carpideiras tomar conta do corpo nessa noite, aproveitando elas para colocarem as suas cuscuvilhices em dia, sobre este, sobre aquele que anda metido com a filha do Zé dos melões, quando, devia ser umas duas da manhã, pelo relógio da torre, o sono tomado de assalto, as velhas, que ressonavam como tractores, algo de estranho começou a passar-se ali na casa mortuária. Um cheiro tamanho fez acordar umas das velhas que tem o nariz bem alerta, e esta, sem freios na língua, tratou logo de acusar a amiga por ter soltado tal atrevimento. A acusada, no momento em ia dizer que tal remate intestinal não fora por ela rematado, outro par de peidos fez estremecer o lugar.


- Ai minha nossa! – Exclamaram as velhas carpideiras em coro. Mas, assim que se aperceberam que tais estrondos haviam saído lá para os lados do morto, deram à sola como gente grande.


Nisto, sem manobras de diversão, o morto, ou melhor, o ex-morto, o ressuscitado Zeca, graças á libertação dos gases acumulados, mais o alarido provocado pelas velhas, abriu os olhos, deu conta de si, viu que estava dentro de um fato escuro, e por sua vez dentro de um caixão, e, ao abrigo da sorte e da fé, agora bem mais aliviado da tripa e livre do mal, disse estas palavras:


- Olha se eu não soubesse assobiar pelo cu!




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