terça-feira, 15 de novembro de 2011

ANÚNCIO DE JORNAL


Ir à morte e voltar deve ser das coisas mais fascinantes. Salvo erro, só uma pessoa conseguiu esse feito, há uns dois mil e onze anos atrás, quase doze. Por estes dias, deixei de acreditar em certas e determinadas merdas. Amasso o meu pão de cada dia e a fome é sempre igual. A Helena deixou-me um recado no espelho a dizer: FUCK YOU! O batom ainda estava fresco, logo, presumi ter sido escrito há poucas horas. Desde esse dia, acordar é quase tão difícil como fechar os olhos para dormir. Agora sei. Sonho com vampiras a chuparem-me todo e eu a pedir sangue aos que estão prestes a morrer. Depois acordo com vontade de rachar a vida em dois pedaços grandes. A solidão mete nojo, é a minha conclusão. Não havia existir mais nada para além do amor. As mulheres fazem-me pensar: por que existo? Agora divido o apartamento com insectos e alguns ratos que passeiam. Os vizinhos são tipos cheios cagança, ignoram-me, como se escritor fosse uma doença que come a carne e os ossos. Nada mais sei do amanhã. Que se lixem as projecções futuras e as almas penadas no meio da rua. Há dias pus um anúncio num jornal a perguntar se ainda há mulheres sérias que queiram um relacionamento discreto e com futuro. Deixei contacto de telemóvel e morada no jornal Barcelos Popular, e aqui estou: neste apartamento cuja única vista é o acampamento dos ciganos a esconderem a droguinha no cu das mulas; a aguardar que me liguem ou me batam à porta. Imagino mulheres de todas as cores, mas não surge nada. Será maré de azar ou será que o meu destino é cair de costas num abismo? Voltei a aguardar, sentado num banco cujas pernas estão piores do que as minhas. No primeiro dia ligaram-me três mulheres, altamente interessadas em conhecer um pouco mais do que a voz que ouviam pelo telefone. Fiquei aceso por dentro e fora do corpo. Finalmente Deus ouviu as minhas preces, ainda que apenas as tenha somente murmurado entredentes. Marquei com uma delas às cinco e, enquanto vinha e não vinha, fui preparando a caminha. Ah, a caminha, nem ela se lembra da última vez quanto mais eu. Bebi dois copos de Gim para ter ideias e poder falar sobre coisas que raramente me ocorrem, tais como: sistemas planetários, política estrangeira, literatura clássica, etc. A ansiedade mal teve tempo de se instalar em mim pois alguém bateu à porta com ritmo suave, como se viesse com uma música romântica na cabeça. Fui abrir, cheio de peito, caminhando em direcção à porta com a minha masculinidade ao alto. Abri a porta. Era uma senhora bastante gorda e com indícios de quem a amargura lhe comera alguma parte importante do corpo. Sinceramente perdi a tusa. 

- Bom dia. É o senhor Bilinho?
- Não, aqui não há nenhum Bilinho. Tenha um bom dia.

Em poucas palavras despachei a gorda e fui morrer mais um bocado para a sala com mais dois copos de Gim, sonhando com coisas que não devia. No dia seguinte, outro telefonema. Pela voz, imaginei um céu a inventar os seus pássaros. Uma doçura de voz ao qual, mais dois minutos no meu ouvido, ainda apanhava a diabetes. Esta não era gorda nem magra, disse-me sem que lhe perguntasse. Fiquei tranquilo, mas até ao momento em que espreitei pelo olho da porta e, raios parta o meu azar, a tipa era manca e tinha um olho bastante descaído. Bateu tantas vezes à porta até se cansar e ir-se embora a resmungar e a chamar-me nomes trogloditas. 
Suspirei de alívio, embora tudo corresse mal. Perguntei-me, onde param as gajas boas? Depois ligou-me outra meia gaga, meia surda e meia badalhoca a tratar-me por amor. Desliguei-lhe a chamada nas bentas e fui-me derreter de ócio para a sala. Na manhã seguinte acordei com a solução no pensamento: fui ao jornal e dei uma volta ao texto do anúncio. Ficou assim: "Cavalheiro bem formado, bem de vida, casa própria, procura senhora para compromisso sério. Ligar somente interessadas". Por sorte, a sorte começou logo ali. Nem foi preciso alguém ligar já que uma mulher toda charmosa e com bom chassi deu-me a entender ser um bom volante em minhas mãos para as curvas que eu quisesse dar. Uma loirinha a sofrer da mesma solidão que eu, predisposta a ir lá a casa experimentar uns pinotes sobre o meu colchão. Dois dedos de paleio, se tanto, metemo-nos no carro dela e fomo-nos, animadinhos com conversas, a meu ver, escaldantes. Gostava da forma como ela metia as mudanças, da prioridade que dava aos velhinhos com um gesto. Uma doçura. Quando perto da minha casa, disse-lhe: chegamos, moro aqui. Estacionou. A loira ficou em pensamentos breves, observando a falta de telhas em partes do telhado, as janelas sem simetria, os caleiros podres, o cão a roer uma galocha. Houve um silêncio. Um pequeno silêncio. Depois, a sorrir, disse-me, então, não nem vens abrir a porta do carro a uma senhora? Ó, claro que sim, respondi. Saí do carro todo galante, olhei o céu, pisquei o olho a Deus em agradecimento e, quando menos esperava, a vacarrona da gaja meteu a primeira e arrancou a todo o gás. Bem, pelo menos lançou-me um adeus.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Artista de cinema

Olho para o céu, e nada. Olho para a paisagem lá do fundo, e nada. Olho para as minhas mãos, e nada. Olho para os meus bolsos, e nada. Olho para a minha vida e nada. Gosto de começos tristes, coisas que nos façam pensar por dentro daquilo que não está à vista. Gosto de olhar as mulheres e imaginar a roupa interior, a marca do soutien, o tamanho dos montes, o caminho para lá chegar, a ferida que cura os homens.
Conheci a Matilde nos anos noventa. Na altura ela era então uma costureira de ponto corrido e tinha umas mãos que eram uma verdadeira conspiração contra o divino. Mexia nos homens como um especialista em bolos de aniversário. Aos fins-de-semana dava duro num bar a servir bebidas na esplanada, com uma saiinha que, ao inclinar-se mais de 20 graus para a frente, via-se nitidamente as curvas apertadas onde qualquer um gostaria de se esbarrar. Era a boazona cá do sítio. Por obra do mistério, só o Quim tirou proveito com os seus dentes de fora. Ninguém queria crer que um gajo de sorriso tão desconchavado conseguira levar a melhor. Tudo bem que ele era formado em musicoterapia e que de vez em quando sacava do pífaro para impressionar, mas, que tem cu a ver com as calças? Depois soube pelos meandros da noite, quando o whisky faz saltar toda a verdade boca fora, que a coisa entre os dois deu para o torto, e o casamento que  tinha até data marcada, ficou em águas de bacalhau. Vinte anos volvidos, a Matilde continua igual a si mesma. A sua beleza bem que pode ser repartida por umas quantas feias que ainda assim não fica a perder. Apenas a dizer que a crise do país fez dela uma actriz porno de primeira com um considerável número de filmes espalhados em vídeo clubes. Diz que o faz por amor, para além do dom de representar. Eu abano a cabeça e solto um pois bem baixinho. Isto de amar sem tusto tem muito que se lhe diga. Para mim, a beleza vê-se na carteira de cada um. A Matilde quer juntar todos os amigos do liceu num jantar. A ideia não está má. Assim, será maneira de reencontrar a Jully, que a meio de uma aula de religião e moral ensinou-me a dar linguados de dez minutos sem dar descanso ao fole do pulmão. Respiração circular, dizia ela. A Matilde organizou então o jantar na sua mansão onde a luxúria reina e que pode fazer mal às vistas a tipos como eu cujo único orgulho é uma taça de quinto lugar em Kayak. A mansão, de facto, era uma coisa por demais. Ao olhá-la, senti-me o homem mais pobre desde que a humanidade existe. Aquilo ofuscava mesmo. Toda a malta do velho liceu estava lá, inclusive a Quinhas que faz makumbices, o Tone Rato, a Verónica igualmente gorda, o Santos que de santo não tem nada, a Bete, ah a Bette! Todos com um ar de bem colocados na vida. Ainda bem que pedi a jaqueta ao meu tio, pensei eu com os meus rojões. Uma sineta tocou para alertar que o jantar ia ser servido entretanto. Os centros de mesa tinham algo de admirável. Conversou-se sobre o passado e assuntos da ordem do dia. O vinho acendia olhares. Depois, fez-se um ataque cerrado à carne assada. Em três garfadas pus a minha barriga feliz. Olhava tudo e todos com pensamento turvo. 
Chateia-me a burguesia e as siglas de doutor que antecedem os nomes. Eu sou apenas o Bilinho, aquele a quem a vida nunca deu mas também nunca lhe pediu. Estamos quites. Fui à varanda fumar um cigarro. A Matilde chegou e fumou um também. O fumo fez puxar pela imaginação. Fiquei sem palavras quando a Matilde, do nada, me ofereceu um papel no seu próximo filme porno, a pagar bem. Tentei pensar duas vezes, mas, ao apontar o dedo para duas loiraças, boas como o milho, foi à primeira que aceitei. Combinámos para o dia seguinte as filmagens, na praia de Ofir. Passei a noite toda acordado, a fazer flexões e abdominais para ficar bem no ecrã. 

Quando cheguei à praia, pela fresquinha da manhã, estava tudo a postos. Meteram-me num barco a remos com as loiraças, mais o operador de câmara, que também é produtor, actor, guionista, etc. Em pleno mar, as loiraças – qual delas a melhor - começaram a marmelada. Despiram-se. Ficaram como Nosso Senhor as botou ao mundo. Fiquei logo…bem, vocês sabem. Estava eu ainda a dar aos remos, à espera de ordens do realizador para entrar em acção e mostrar o quanto valho, quando, subitamente, o barco sofreu um arrombo porque um negro musculado mas feio, miraculosamente saiu do fundo das águas, feito sereio, saltando para dentro do barco, pegando numa das loiras e pimba, catrapimba, “toma lá morangos”! Fixado na outra loira, antes de entrar em cena, puxei o meu lado de actor dramático com um snife de ar para dar mais essência à coisa.

Depois, sim, larguei os remos, desci os calções para mostrar a minha raça, a borboleta tatuada próxima da virilha, e fiz-me a ela com garra. Nisto, o realizador gritou, corta, corta! A cena parou. O preto ficou com o material ao dependuro. Irritado, o realizador chegou-se a mim e, ao mesmo tempo que me espetava o indicador várias vezes no peito, disse-me: tu, pá, ficas a remar, só a remar, pá, ouviste? Voltei para os remos, e o filme continuou.




quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Uma história para os amigos

Às vezes, o bom seria esquecermo-nos de tudo, lembrarmos de nada. Começar tudo do zero, fazer de conta que nunca vimos nada daquilo que já vimos, que tudo é a primeira vez, incluindo pai, mãe, amigos, tios. Tudo. Em suma, sugar toda a informação do cérebro e deixar só aquelas partes em que o amor foi triunfador. Só essas. 
Se há recordações que devemos conter nos ficheiros secretos da memória para mais tarde contarmos aos nossos amigos, em vez de cairmos na desgraça de uma filosofia qualquer, esta é uma delas: 23 de Maio do ano de 2003. Eu, Jorge da Conceição, trinta aninhos à flor da pele, poeta do improviso, fiz-me à vida no meu Opel Kadett, a estrear nas minhas mãos, azulinho como o céu, sem horas para regressar, braço de fora, Tony Carreira no leitor de K7s; mexo no retrovisor e vejo que a estrada é toda minha, assim como os pensamentos quando faço contas de somar sobre as gajas que já comi. 
Vou em direcção à praia mais próxima por causa do preço da gasolina. Procuro um alento, um repouso, uma carinha laroca, um berço, uma qualquer coisa que me faça expandir. Percebo que toda vida esperei por mim, e eu aqui tão perto. Sorrio para o retrovisor e vejo que o dentista fez um trabalho porreiro ao completar duas falhas com dois dentes postiços. Não se nota nadinha. Perfeito. Sinto-me o Brad Pitt cá dos quintais. Faço um aceno aos pássaros que estão de regresso. A primavera é uma tia cheia de sorte e, a minha ingenuidade, para certos casos, há-de ganhar uma medalha. Continuo a conduzir. Por vezes sem as mãos no volante. Quero testar a minha gravítica melancolia. E acho que cheguei à praia a voar por cima da estrada. Acho. Ao fundo, uma esplanada cheia de gente. Do longe parecia caganitas de pássaro. Estacionei, saí do carro, e tratei logo de exibir as minhas bermudas haitianas, bem como os meus bíceps que indicam que já ergui meio mundo. Sentei-me e pedi uma Coca-Cola a uma menina toda flash. A duas mesas de mim, estava uma boazona, daquelas que a muitos dá vontade de lhe assaltar as cuecas. Trinta homens olham para ela, desejam-na à superfície do olhar. Todos lhe roubam um pedaço com os olhos. A vida é feita destes tipos de roubos. A boazona não liga puto a ninguém. Está na dela. Pelo tom de pele parece estrangeira, de um sul qualquer. Está concentrada a ler, e folheia as páginas tão lentamente que quase me mata de amor. Fixo-me nela e tento ser telepático, dizendo-lhe coisas belas e excitantes. Até que olhou-me. Olhou-me e fiquei com a suave impressão que escutara os meus pensamentos, aqueles belos e excitantes. Nos intervalos da observação, bebia Coca-Cola e sonhava com a alta possibilidade em sair da explanada com ela, passear no mar e afogar-me nela. Mas há trinta homens a pensar no mesmo, trinta leões à espera que a presa se decida. A antecipação é um jogo difícil. Há certas contas que não se podem contar. Estou no meio da indecisão. Apenas creio no meu romantismo e pouco mais. Divirto-me assim. 
Subitamente, um grandalhão enfurecido aproximou-se da boazona e abriu a mão para lhe desancar. De todos os homens presentes, eu fui o único que se fez ao grandalhão, dando-lhe um murro bem assente na zona dos rins. Depois ameacei-o de morte. Perante esta heroicidade, a moça ficou de beicinhos por mim, convidando-me para ir até ao quarto dela, onde há um champanhe à nossa espera. Fomos. E todos os homens ficaram a ver navios, roídos de inveja por eu ter sacado a boazona de olhos de mar. Cinco minutos, se tanto, bastaram para chegar ao hotel 5 estrelas onde ela estava instalada. Entrámos. Dispensámos cerimónias e começámo-nos a beijar desde o elevador até à suite. Tudo é belo quando o que sonhávamos passa a ser. Aquela nina em minhas mãos, toda a sua carne, os seus olhos ao pé dos meus - A loucura desejada. Fizemos amor numas posições de grau 7 de dificuldade. Foi por um triz que não desloquei a coluna. Demos cabo de duas garrafas de champanhe e adormecemos ao som de uma morna.


(Para os meus amigos, a história acaba aqui) 

Acordei pela manhã e, a moça, misteriosamente sumira. Não estava em lado nenhum nem deixara algum tipo de recado. Decidi ir apanhar ar. Ao passar pela recepção, o janota do mordomo, agora estranhamente mais sorridente, abeirou-se-me e apresentou-me um talão de pagamento de despesas – 347 euros, champanhe incluído. 
Soltei um foda-se. Do lado de fora da grande porta envidraçada, dois capangas, a barrarem caminho. Mas capangas mesmo. Não deu sequer para levantar a voz. De cabeça a doer mais do que todas as vezes juntas que já doeu, puxei do multibanco. Enfurecido, meti-me no Opel Kadett e fui como um míssil direitinho à esplanada. E lá estava ela, a boazona, a cabra, outra vez a ler, e os trinta homens filados nela. Quando me aproximei dela, com uma fúria do Além e pronto para levantar a mão e desancar-lhe, lembro-me de uma sombra por trás de mim, a aproximar-se. A agigantar-se. E não me lembro de mais nada. Excepto uma maldita dor de rins.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Composição:


O meu primeiro dia de aulas

   
O meu primeiro dia de aulas não foi nada de especial. Como prometido, por ter chumbado de ano, furei os pneus da frente à cabrona da professora de inglês e fiz uma chamada anónima para escola a avisar que a mãe do Caixa D'óculos do professor de história dera entrada no hospital com um AVC para ele se meter no carro a correr e, consequentemente, ter um feriado. Cheguei à escola e prestei contas com o Bernardo, um queque que fede a vaidade, por não me ter deixado copiar no exame de matemática. A Joana veio pedir explicações por não lhe ter atendido o telemóvel durante as férias e, como resposta, abracei-me à Margarida, que ao menos essa faz-me os deveres e não me incomoda com o aparelho dos dentes. Antes de entrar na sala de aulas, dei um cachaço no Gordo para que pare de se lambuzar com caramelos espanhóis.

Também apertei os testículos ao Histórico que no ano lectivo anterior andou a fazer queixinhas e a dizer que eu fiz batota no jogo do braço-de-ferro com o Lunetas. A parola da Tina, que em tempos me fez uns manguitos, por se queixar ao director que eu andava a espreitar os balneários das raparigas, à mínima oportunidade, esmigalho-a. Estando a turma toda sentadinha, entrou a nova professora de ciências da natureza, com as pernocas todas à mostra, uns lábios vermelhíssimos e carnudos, que me deram logo uma ideia para lhe baptizar com uma alcunha. Cada um dos alunos fez a sua apresentação. E fiquei a saber que a da carteira da frente, onde normalmente estão os escovas, graxistas, tem os pais separados. Logo ali criei o boato de que o pai dela fugira com o tipo do supermercado porque, dias antes, apanhara a mulher em flagrante com a cunhada que, por sua vez, tem um filho lingrinhas a frequentar esquinas no Barreiro. Depois veio o toque de saída e, na confusão, fiz um calço ao Borboleta que deu de queixos no chão, a sangrar como um porco. Apontei culpas ao Sardento, que é tido como o pestinha, apanhando assim dois dias de suspensão. 

No recreio fui dar uns toques à bola e, na distracção de todos, assassinei a bola com uma canivetada e pus-me a Leste. Fui até à biblioteca dar uns arrotos e acusei os marrões de falta de sensibilidade. Vendi dois cigarros ao Espinhoso e alertei-o pela décima vez para não estudar tanto que faz ganhar pontos negros. De seguida tive um momento lúdico com a Margarida na parte de trás do ginásio. Tocou para a aula de português. Ó, como eu adoro as aulas de português! Dizem que a língua portuguesa é traiçoeira, mas não é. Às vezes é tudo uma questão de sotaque, de saber colocar bem a boquinha. O professor, um tipo novo, ar de quem faz apostas em corridas de cavalos, revelou ser adepto do estilo poético Haikus. Gritei, Hai quê?
A empregada, que não era nada de se deitar fora, trouxe uma circular a anunciar que este ano iam começar as aulas de Educação Sexual. Fiquei logo excitadíssimo, íssimo, íssimo, a perguntar onde, quando e a que horas. Terminada a aula de português, e saber que ia levar com o cego do Camões outra vez, fui ao bar perguntar se tinha unhas de porco. Disse-me que não. Foi o que eu suspeitei...Na primeira aula de físico-química, antes do professor entrar, ensinei os restantes alunos a destilar uma pedra de haxixe, assim como a maneira mais eficaz de esconder os vestígios dos nossos pais. Na aula de religião e moral foi-nos ensinado que o abraço é muito importante, e que uma apalpadela no rabo pode ser pedagógica. No primeiro dia de aulas os livros cheiram a novo, as salas estão lavadinhas, os mictórios cheiram a rosmaninho, e nas portas das cagadeiras escrevem-se os primeiros poemas de amor, como: amor, espero por ti na mata.

Todos os alunos estão sorridentes, entram com o pé direito. Só a Maria Ratona, por ser perneta, é que não teve alternativa. Na aula de educação física os rapazes ficam em pulgas, fazem o cerco às que trazem cuequinha fio dental, e eu, fartinho de assar frangos, cerco as que não trazem nadinha. A Mirolha estuda muito mas não vai lá. Já lhe disse que tem que meter uma coisa na cabeça, ou vice-versa. O senhor da portaria tem um quê paternal, nomeadamente quando diz: anda cá ao papazito. No fim das aulas fui para casa, a pé. Passei rente ao muro do Vilas e fanei-lhe umas uvas. Lancei piropos às moças das fábricas e cuspi no vidro lateral da camionete. 
Chegado a casa, sentei-me para jantar, a ver o telejornal. E o meu pai, todo salazarento, que acompanhava a notícia de violência nas escolas, disse em voz alta e agressiva: A culpa não é dos alunos. A culpa é dos cabrões, pataratas dos pais que não sabem dar educação aos filhos! Eu abanei a cabeça e concordei.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Pequenas memórias conventuais

A minha vida nunca mais foi a mesma desde que me mandaram embora do coro por falar obscenidades. Ninguém entende um pobre poeta, este gentil colaborador de revistas e jornais a troco de uma bucha. Voltei ao desemprego, à malandragem, ao sucesso entre os amigos. Eles gostaram de me ver e saudaram-me como se eu fosse uma criatura adorável. Feitas as contas, já lá vão vinte anos desde que fui parar ao seminário a ver se miraculosamente me endireitavam. Tenho saudades das freirinhas, dos bolinhos do céu, de lhes apalpar o rabo sem que elas imaginassem a intenção do acto. Mas não tenho saudades do Irmão Paulo, quando, à má fila, lia versículos bem pertinho do meu ouvido. Esse papa-hóstias, que estava bem era no Cambodja a ser...deixem para lá! Por sorte divina, salvei-me a tempo de não ser experimentado. Também tenho saudades de apanhar a Irmã Manuela a mijar de pé, no jardim, a fingir que cheirava as flores enquanto trauteava a Música no Coração.
Aprendi muita coisa por lá: a fazer a cama, a tomar banho diariamente, a enrolar charros, a esfregar o chão, a tocar prá missa, a reparar telhados, a amar a próxima...
Bem, pelo menos engordei com as batatas a murro que, quando não havia batatas, murro havia sempre. As freiras benziam-se assim que me viam. Achavam que eu era um pequeno demónio capaz de convencer um santo a pisgar-se da parede. A culpa não é minha. Fui abandonado ainda antes de nascer. Não sei como é que a minha mãe conseguiu uma proeza dessas, mas conseguiu. E vi-me sozinho no mundo. Achado num cesto à porta da taberna do Andrade. Andei de família em família. Os meus últimos pais adoptivos devolveram-me à rua. Mas graças a Deus tiveram o cuidado em me deixar de novo na taberna do Andrade, com um bilhete a dizer: não se aceita devolução!

Até que algum lambe-cus teve a infeliz ideia de me levar para o seminário. As noviças gostavam muito de mim, tratavam-me por menino e faziam-me festinhas. Mal imaginavam elas que havia um anjolas a crescer por dentro, com vontade de rachar-lhes o céu. Quando comecei a ganhar barba rija as coisas complicaram-se. As minhas mãozinhas indomáveis tinham de ficar quietas, e tinha dois padres austeros a tomar conta de mim. Sobretudo, quando as mui formosas freirinhas iam apanhar frutos das árvores e pediam-me para segurar no escadote. Ai de mim se lhes contemplasse as cuecas. Ia de joelhos até ao confessionário. Hoje sei porque me doem as dobradiças das pernas nas mudanças de estação.
Fiz a escola toda e fiquei a saber muitas coisas, nomeadamente sobre anatomia, já que cedo me revelei entusiasta em mexer em órgãos e afins. Um dia, mostrei a pila às meninas do coro, e elas, doidas como galinhas, puseram-se a cantar o tirolês. Com esta brincadeira levei com um processo em cima. Não na pila, mas sim na minha pessoa. A Madre chamou-me aos seus aposentos com um grito histérico de longe. E lá fui, triste e magoado, com a incompreensão do tamanho do mundo. Ordenou-me missionário em terras de África. Não tinha como desobedecer, interpretei isso como um chamamento, uma renovação espiritual. Só que, assim que me vi no meio de tantas negras rabudas e bonitas, foi o que foi. Acho que a minha maior missão por lá foi aumentar à taxa de natalidade. E novo processo contra mim. O que achei injusto. Contestei, invocando o amor sem protecção sendo a minha grande Obra.

Tive um regresso forçado e a Madre recebeu-me de vassoura na mão, que julguei que seria para bater, mas não. Tive de varrer dois hectares de terreno, inclusive as retretes. Foram vinte dias do pior. A rezar por mim abaixo. O certo é que me tornei menos zaragateiro e mais sociável e, como prova disso, foi a organização da Festa de Natal. Tratei de tudo sozinho, inclusive o convidar umas boas renas disfarçadas, que deram animação àquela pasmaceira toda. Eram duas húngaras e duas eslovacas. Só mais tarde tive de justificar a falta de vocação delas quando chegou a hora de cantar na missa do galo. Estava-lhe pelos cabelos. A Madre superior disse-me estar na altura de ir. De me fazer à vida. E logo naquele empírico momento, em que a minha linda vocação estava prestes a vir ao de cima. 

Tive de ir pregar o evangelho para outro lugar. Ainda ajudei à missa em duas ou três paróquias mas o resultado era sempre o mesmo: rua daqui p'ra fora, seu porco, tarado! Enfim, a vida é dura e a incompreensão mais dura o é. Tenho fé que as coisas mudem, que Deus ponha mão neste poeta gentil, que é dado por um judas. Bem, pelo menos salvam-me os amigos que, lá por ter andado vinte anos em instituições religiosas, julgam-me um iluminado. É certo, os meus amigos gostam de mim, abraçam-me quando me vêem, pedem-me a bênção, sabeis porquê, caríssimos irmãos? Porque sou perito em conversa fiada! Ámen!

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Por falar em crise

Eu estava sentado na esplanada a ler uma revista sobre as estatísticas do divórcio. O sol estava muito perto de mim. Encontrava-me numa das praias do sul cujo nome não me convém referir por motivos pessoais. (adoro os motivos pessoais!) 
De férias, tinha as moças de biquíni para me alegrar. Um batido de sumo natural com chapeuzinhos engalhados fazia-me acreditar na vida eterna. No mar havia surfistas que, quando caíam da prancha, eu imaginava tubarões a fazer-lhes cocegas nos pés. Entretanto tinha pedido um pires de camarões e uns quantos lagostins para o estômago não me acusar de irresponsável. Saboreei cada perninha do marisco ao ponto de deixar água na boca às pessoas que passavam. O hotel onde estava instalado foi escolhido pelo chefe da minha empresa, como recompensa do meu desempenho. Era um hotel cinco estrelas, com campo de ténis, campo de golfe, piscinas, massagens privadas, ginásio, etc, frequentado por jogadores de futebol, artistas de cinema, escritores em fase de expansão, etc. Fiquei na suite presidencial, com direito a tudo e mais alguma coisa. Mas dizia eu. Estava sentado na esplanada, a adoçar o bico, ora com o melhor vinho das adegas, ora com olhares sobre as ondas. Nisto, uma estrangeira, daquelas de capa de revista, deitada na areia fina da praia, acenou-me. Certifiquei-me que o aceno era para mim e, depois de confirmado, acenei-lhe também. Fui ter com ela. Não paguei a conta porque estava tudo pago. O meu chefe havia dado ordens supremas para que todas as despesas fossem encaminhadas para a empresa. Incluindo diversão. Bem, quando cheguei perto da moça, aí vi que ela era a filha herdeira do dono do hotel. Confesso que fiquei um pouco tímido, mas, quando me pediu para lhe passar creme protector solar nas costas, perdi logo a timidez, e dei a vez a um tipo cheio de experiência. Estava nas sete quintas. Quem diria que logo no primeiro dia de férias tal sorte me iria calhar. 
Após uma boa dose de conversa, fomos dar uma volta no iate que tinha à minha disposição. A meia légua da costa, ela tirou a parte de cima do biquíni e mostrou que tem ido ao ginásio. 
O mar estava calmo, uma leve brisa fazia o corpo pensar, e um grupo de golfinhos exibia-se para as nossas máquinas fotográficas. Fizemos mergulho e visitámos corais. Foi lindo!
O iate era daqueles que muita gente daria a vida só para pôr um pezinho em cima. Bar, cama, hidromassagem, LCD. Até uma orquestra sinfónica havia. Eram uns tipos contratados para dar mais feeling à coisa. Foi uma tarde em cheio! Salvo erro, fizemos amor umas oito vezes. Oito não, talvez seis, ou três, ou, esqueçam. Fizemos amor. É só do que me lembro. Ainda recebi uma chamada do chefe a perguntar se estava tudo bem. Que não me poupasse em nada. Ah, e o iate ficaria para mim. 
De tão feliz, atirei os músicos à água e pus-me a dançar Fox-trot mais a Gabriela, até a noite chegar. Dali, metemo-nos no Porsche e fomos de volta ao hotel onde um buffet do melhor e do mais sentimental esperava por nós. Enquanto nos deliciávamos com caviar e champanhe francês, um grupo de bailarinos exibia uma dança entre cada prato. Falámos sobre projecções futuras, possíveis alianças, e quem sabe, comprar uma ilha e criarmos os nossos filhos no mais conceituado colégio de Nova Iorque. Ela disse que sim, eu sorri-lhe para o decote. Quanto mais sorria, mais o decote se abria. Por fim, uma gargalhada. A noite estava quente. O perfume dela entrava-me nos ossos. Mais à noitinha, participámos num leilão de arte e, como estava de espírito aberto, adquiri um quadro de René Magritte por uns poucos milhões de euros para oferecer à Gabriela, como prova do nosso amor. Ainda estivemos uns minutos à conversa com o rei da Prússia. Pessoa culta, que elogiou o bom gosto do meu Rolex em ouro maciço para, de seguida, dali, irmos aconchegar os corpos num colchão de água. O chefe voltou a ligar a lembrar-me que férias são férias. Ligeiramente exaustos, não fomos além das duas quecas seguidas. Restava-nos o sono, embrulhados em lençóis de seda perfumados. 

O dia seguinte prometia aventuras pelos céus num jacto privado. Visitar o Jurassic Park, montados num camelo; fazer parapente, participar em banquete, e por fim, yoga. E foi ao som de um qualquer prelúdio de Bach que adormecemos e sonhámos com o milagre das coisas. Nisto, ainda com sabor de amoras na boca, alguém bateu à porta e, sem pedir licença, entrou. 
De olhos fechados, e um pouco de remela a impedir que os abrisse imediatamente, imaginei uma loira a trazer o pequeno-almoço à cama mas, assim que um balde de água fria caiu sobre mim, gritei: merda, gaita! Era o cabrão do meu chefe aos berros, gesticulando ferozmente, a enxotar-me com os pés para olho da rua, por estar a dormir no local de trabalho em horas de trabalho. E assim, “Gracias a la Vida”, era uma vez um sonhador.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Tal cão, tal dono


Sei que não é hora nem momento, nem sei se a paciência está em bons dias. Detesto deixar as coisas pela metade. Ter de subir as calças só porque palpita que vem aí o pai dela. Mas a vida é assim, um tira e põe, tira e põe. 
Estou condenado a nada. 
A Judite quer-me a tempo inteiro, como se amar fosse um ofício, uma declaração de princípios à qual não podemos mudar uma linha. Meus amigos, o amor quer-se cavalo à solta. Que seja assim. Estou marimbando-me para os cavalos. Há dias recebi uma queixa em casa, não por carta, não pela Internet, mas pela boca dos vizinhos. Que o meu cão anda a provocar desassossegos nas cadelinhas, ora vejam lá. Por jeitos, salta os muros para lhes chegar. Em suma, as cadelas estão em vias de ficarem todas prenhes. E, caso isso venha a acontecer, alguém terá de ser responsável pela ninhada. Neste caso, eu. Já lhe tentei chamar a atenção mas, que querem, o cão não me dá ouvidos. Está viciado na coisa. Que, ainda por cima, vejam lá o meu azar, está apaixonado pela cadela do quinto esquerdo. E foi precisamente a dona da cadelinha do quinto esquerdo que no outro dia veio tocar à campainha. Fiquei logo chateado. Primeiro, porque nesse dia perdi de ver as Tardes da Júlia. Segundo, porque não consegui pôr a gravar as Tarde da Júlia. E terceiro, por causa das duas alíneas anteriores. No entanto, assim que abri a porta, ao topar aquele cabelo loiro, aquelas pernas esguias, a fazer lembrar as moças da passerelle, ganhei logo outro jeito, uma afabilidade à Pai Natal, e disse-lhe: 

- Sim, faça favor de dizer.
- O seu cão é um malvado!
- Como assim?
- Anda sempre em cima da minha cadelinha. Ou lhe dá educação, ou então, o melhor é castrá-lo!
- Deixe estar que resolverei isso de outra maneira.

Não tive outro remédio senão o de chamar o Bobby a um canto e dar-lhe uma repreensão valente, assim como levar a cabo umas sessões espirituais para lhe limpar a mente de certas depravações. Duas semanas foram suficientes para que o Bobby amansasse das ideias. E, para sorte dele, não foram precisos remédios para lhe cortar os ânimos. 
O meu Bobby dedicava-se agora à leitura e a construir aviõezinhos de cartão. Tornou-se um exemplo de como se vence na vida com a força exclusiva da vontade. Se continuar assim, ainda há-de vencer umas olimpíadas de matemática. Começou a frequentar bibliotecas e pastelarias requintadas. Entrou em celibato e as queixas deixaram de surgir. Era um senhor cão! Os dias foram feitos nesta monotonia, sem grandes aventuras, grandes voos, grandes quimeras. A Judite voltou cá para casa, e com ela, as malas do passado. Festejámos a vinda dela em cima da máquina de lavar. A tal que tem o motor meio avariado para aproveitar a trepidação. Oh, como foi bom recordar! Enquanto a Judite fazia umas limpezas em casas particulares eu ganhava algum a colar cartazes de publicidade pela cidade ou a pôr folhetos nos vidros dos carros. Por vezes fazia-o de noite, pela fresquinha. O Bobby entretinha-se com a sua paz. A vida devagar sempre rola com mais cautela. À Judite deu-lhe para embirrar com o cão, que é um pasmaceiro, que não se sente à vontade em fazer amor comigo pois o danado do cão repara em tudo, põe-se a olhar com aqueles olhos fundos. Chegou a uma altura que foi do tipo: ou ele ou eu. Tinha ali um bico-de-obra dos diabos. O Bobby assistiu à conversa e decidiu por conta própria sair de casa. Dei pela falta dele numa manhã. Procurei por várias ruas e não o encontrei. Pus uns panfletos a dizer «Procura-se, dá-se recompensa». Pois este cão era tudo para mim. Não o trocaria por nada deste mundo.

A Judite não gostou da ideia e pirou-se sem dizer nada. Dias depois, bateram-me à porta. Era a loira do quinto esquerdo. Estava em lágrimas, a perguntar se vi a cadelinha dela, que por jeitos sumiu pela calada da noite. Convidei-a a vir sentar-se no sofá para animá-la com dois dedos de conversa, ou duas pernas, ou quatro pernas, tanto faz. Bebemos uns licores de umas garrafas que tinha por abrir, que deveriam ser para a altura Páscoa. Como todos os dias vinha cá a casa saber se havia novidades, começou a surgir entre nós uma química, e depois, uma física. 
Sem dar por nada, estávamos a viver juntos há dois meses, a chorar a partida dos nossos animaizinhos de estimação. Numa bela noite, a tomar embalo com umas beijocas, alguém ligou. Atendi.

- Olhe, encontrei o seu cão juntamente com uma cadelinha!

Com a mão a calar o telefone, olhei por uns segundos a minha vida, a loirinha, a cama e a roupa lavada, comer na mesa, o futuro a sorrir como uma criança. A vida está difícil para dois quanto mais para sustentar animaizinhos de estimação atrevidos, capazes de mudar o rumo das coisas. Desliguei o telefone friamente.

- Quem era, amor?
- Ninguém, ninguém, foi engano.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Jaime-Jaime


Quem ainda se lembra do Jaime-Jaime, lembra-se dos campeonatos de boxe ganhos, dos troféus erguidos em frente às televisões, dos avisos sucessivos que ele fazia aos seus adversários ameaçando que lhes partia a cana do nariz. Quem se lembra disto, lembra-se também do quanto era importante ser amigo dele, de ir a uma disco e ser ele quem estava à porta. 
O Jaime-Jaime, uma verdadeira força da natureza, a sua voz de trovão fazia estremecer os corpos e recuar os inimigos. A sua cara cheia de golpes era o seu cartão-de-visita. Olhá-lo de perto era já uma afronta. Mantinha respeito. Quando entrava no café, sabia-se o significado do seu silêncio. Só dava pela certa. E o certo é que ninguém se opunha. O Jaime-Jaime era um tipo à moda antiga, falava tosco, carregava um nadinha nos erres, mas ai daquele que fizesse troça. Os seus músculos pareciam de cimento armado. Apenas no amor é que a coisa não lhe corria por aí além, apesar de ter um coração mole para as raparigas. Os seus triunfos a este nível não lhe traziam grandes vantagens. Se com os homens era, repito, um autêntico feroz, com as mulheres, era um coninhas. Sim, porque elas metiam-lhe medo. Sempre que se aproximava de uma mulher, ainda que fosse para pedir lumes para um cigarro, envergonhava-se de tal forma que, para aumentar mais a esta sua pobreza, chegava até a libertar um xixi pelas perneiras abaixo. E lentamente foi tomado pelo desgosto por não haver uma, pelo menos uma que se pusesse debaixo dele sem ser por interesse, mas sim por amor. Agora só entre nós, dizem os da aldeia que este medo que o Jaime-Jaime tem das mulheres e que o faz fugir tal como um coelho foge do caçador, é por ter o “membro” pequeno. É verdade, sim senhor, quem diria que um todo musculado tivesse carne em falta lá pelo tomatal. Vai daí a sua vergonha. Depois, ó diacho, se isto vem a público, lá se vão os méritos todos do passado, e de feroz passa a ser conhecido pelo Pila-Curta, aquele que tem um lápis que só escreve a letras minúsculas. Anos se passaram e o Jaime-Jaime lá conseguiu arranjar uma a seu jeito, segundo ele, a flor mais virgem das redondezas, trabalhadeira e daquelas que se deita cedo. Uma mocinha de passado negro, infeliz, que mal se lembra dele começa a chorar. Que ninguém lho lembre. Começa a chorar. Dizem que foi por ter provado da erva do diabo. Ou da carne, não se sabe. É uma incógnita o seu choro. Felizmente os dias são os melhores lava-roupas que há por aí. Por outro lado, claro que o Jaime-Jaime sofria em segredo pelo tamanho pequeno do seu lápis que, de certo modo, não lhe dava possibilidades de escrever grande coisa. E havia noites que pedia ao santo milagreiro dos lápis para que, por obra e graça, lhe aumentasse o dito cujo.
Mas o Jaime-Jaime não desistiu, e foi de propósito ao estrangeiro resolver o assunto que tem, neste caso não tem, entre pernas, onde, por jeitos, há lá um médico especialista que faz uns excertos e implantes que são uma categoria. Durante uns meses por lá andou, no estrangeiro, entre consultas diárias, picadas no cu, tirar carne de um lado para pôr no outro, mais umas quantas recaídas, mais noites mal dormidas e por fim umas ligaduras em volta do novo membro descaradamente ampliado. 
O Zeca andava em pulgas para ver o resultado. No entanto, pelo tamanho do enchumaço, a coisa devia estar no ponto certo. Quando chegou o dia verdadeiro de todas as evidências, depois de desenroladas as ligaduras com cuidado analítico, eis o pirilau, um senhor pirilau, mas com uma contrapartida. Era negro, negro escuro como a puta que o pariu!, gritou o Jaime-Jaime furioso e raivoso ao ver o resultado. Teve de se conter com o que tinha e voltar para casa experimentar novas escrituras. Era uma questão de adaptação. 
A sua mulher estava avisada que uma surpresa se iria dar. Ao saber disto, despachou-se logo a perfumar-se, preparou uns licores afrodisíacos num copo só, e esperou deitada na cama, nua debaixo dos lençóis com uma ansiedade trepidante no coração. Apesar dos contras, o herói chegou triunfante, entrando no quarto como se entrasse num ringue. Era o Jaime-Jaime no seu melhor. Começaram com uns pequenos beijos, uns abanões de lado, até que chegou a altura de lhe atacar com a surpresa, o seu novíssimo exemplar XXL. A sua mulher, ao ver a ferramenta, primeiro emocionou-se, depois começou a chorar...


Mundo cão


Estou farto de artistas, poetas de tascos, pintores de rua, mais aqueles gajos estátua que ganham dinheiro sem mexer um corno. 
Detesto os deficientes com o toco da perna à mostra, todos doridos na voz, mais aqueles outros que vendem rifas para as associações de bêbados anónimos e viciados em metadonas. 
Estou farto dos hippies a fazerem pulseirinhas com os nomes das pessoas, dos engraxadores de sapatos que gostam de ouvir piadas secas. Também os fackirs a engolirem um conjunto inteiro de talheres, mais as mulheres que passeiam, dando mostras que não precisam dos homens por saberem diante mão que têm os dedinhos para amar. Sim, todos estes tipos que enchem as ruas e não deixam um metro quadrado sequer para eu vender um par de óculos, que por azar, tenho o fornecedor, que é chinês, à perna para lhe pagar.

O negócio está de rastos e leva-me também nesse arrastão. Ninguém confia em ninguém. Eu próprio tenho vezes que não confio em mim. O problema é que as pessoas que passeiam pelo centro da cidade gostam mais de apreciar os artistas. Estes sim, dão cabo do negócio, e só têm de fazer umas habilidadezinhas para impressionar o freguês. Outro dia chegou mais um caricaturista. Pela pinta, nota-se que sabe-a toda. Em duas horas encheu os bolsos de dinheiro, a desfigurar o rosto das pessoas com um lápis em punho num papel branco que depois elas levam-no enroladinho para mais tarde encaixilharem e babarem-se perante os amigos. E eu ali, com uma centena de óculos de sol estendidos ordenadamente sobre um pano para vender, e ninguém se chega à beira. Lerpo sempre. Com estas e com outras a Lice tem-me dado cabo dos neurónios e, nas entrelinhas, vai-me dizendo, não há dinheirinho, não há colinho! Já pensei em despachá-la ou pô-la a render, mas admito que tenho um fraquinho por ela. A cada dia começo a odiar o mundo, a deitar fogo em cada coisa com os olhos. Sem salário fixo estou empenhado até aos ossos. Não sei como, nem quando, nem onde, nem porquê, nem porque, nem o cacete a quatro. Todos os dias são recheados de metafísicas que me colocam foram dos eixos normais. É um sei lá bem o meu futuro. Assim como o da Lice, que aproveita a água suja para dar de beber às galinhas. No entanto, a cada manhã tenho de enfrentar a vida. E lá vou eu para o largo do Senhor da Cruz, apoiado numa crença que desconheço nem faço contas em conhecer tão cedo.
Como em todas as manhãs, os artistas começam a chegar um por um, até formarem uma cambada e tomarem conta da atenção das pessoas lá com os seus malabarismos de meia tigela. Pelo menos o fackir adoeceu. Parece que engoliu uma espinha. O que é um contra senso. Mas é bem-feita. O cigano que vende prata por ouro também não veio, provavelmente foi dentro. É bem-feita também. Só as romenas, sujas e porcas é que se plantam à porta da igreja, e o gajo das taludas mete-se com todos. 
Depois há o malotinha do cego, que me cansa com a sua concertina e vozinha deslavada. Sem falar no cão, que controla tudo e todos com aquele ar à chefe de família. Penso: mas será que neste largo não existe gente decente? O deficiente lá veio, a caminhar com a sua prótese metida. Senta-se, tira a prótese, expõe o toquinho da perna e coloca a voz em tom de lamúria. O certo é que consegue um bom dinheiro. Enquanto eu, nada vezes nada. E penso na Lice que deve estar em casa a desesperar que eu ganhe algum e com esse algum passe no talho para comprar uns fígados de porco para haver jantar. Não adianta destruir o mundo se com ele vamos também. Ao olhar os cravas, confirmo que a vida é um pão-de-ló que se desfaz na boca. A minha Lice disse que vinha, e veio. Farta-me de me dizer que quer um pilas para criar, mas eu digo-lhe, estás a ver estas minhas duas mãos vazias? Ela não quer saber senão do dinheirinho para haver uma justificativa da existência do frigorífico. Ela sabe da concorrência, destes pedinchões que se metem a roubar os fregueses. O aleijado safa-se, como sempre. Tem bons motivos: meia perna decepada, e um Deus vos abençoe na ponta da língua. Apetece decepar-lhe a outra perna, por tanta dor fingida. A Lice repara em todo o cenário, na cambada que se junta para fazer nenhum, só à cata de beneficência. Não tira os olhos do perneta que, de quando em quando, as moedas caem no cestinho. Ainda por cima, sem impostos. Reparo na Lice. Nunca a vira pensativa. Mas eu sou eu, e a Lice continua a sonhar igual a um touro no meio da arena. Toquei-lhe com o braço, e perguntei-lhe: há azar? Escutou-se um clique. Ah, desculpa, estava a olhar o perneta…olha só como ele ganha muito dinheiro… - Respondeu a Lice, enquanto vampiricamente e com cifrões nas íris olhava as minhas duas lindas pernas…

A minha Maria


Amigos, depois de escrever esta crónica vou directamente para a caminha onde tenho a minha Maria a aquecer os lençóis. Sinceramente, só de pensar que tenho a minha Maria prontinha para as minhas imaginações, está-me a custar no pêlo cada palavra que escrevo, pois cada palavra que aqui escrevo faz-me demorar e, se acaso demorar mais que uma cafeteira ao lume, a minha Maria adormece e não há nada para ninguém. 
Portanto, vou tentar ser breve ao máximo, consciente que compreendereis que a minha imaginação para escrever está nas lonas, fechada para obras, ou, para ser mais preciso, a minha escrita está como de um velho oitenta anos quando fala sobre sexualidade: fala, fala, mas não diz nada.
Amigos, não se admirem se me ausentar desta crónica repentinamente ou se vos deixar aqui pendurados num verso qualquer, onde as reticências farão o melhor que sei. Prometo, no entanto, que na próxima farei o meu melhor, já que, o pior é isto que aqui vêem: uma crónica sem sentido, despudorada, insignificante, palavras sobre um papel tal como uma planta sem terra. Estou aqui mas estou a pensar na minha Maria, que tanto sentido dá à minha vida, volta e meia dá-me a volta ao corpo na cama para ficar por cima, com a sua mão na minha a indicar-me o caminho da felicidade.

Hoje sim, era um daqueles dias que podia falar de futebol, mas oh meus amigos, eu de bolas só percebo de bolas de queijo, e nada mais! E quando a literatura se acaba, fica o desejo a meia haste. No fundo estou aqui a escrever por causa dos cinquenta euros que o jornal me dá e que muita falta me fazem para o que agora não me lembro, ou não quero recordar.
Tenho essa liberdade, de escrever não escrevendo. Fazer de conta que. E tenho amigos que admiram esta minha farsa, por ser dócil e não ter más influências. Dizia, daqui vou directo e literalmente para o colinho da minha Maria. 
Não para lhe catar piolhos ou fazer cóceguinhas nos pés, mas sim para lhe mostrar a luz viva dos meus olhos por debaixo dos lençóis. Se esta noite morrer, já sabeis do que foi: afogado em mim. A minha Maria é igual à Maria de todos os homens. Gosta de jantares românticos em que sejamos nós apagar a conta. Usa tacão alto para mostrar que está crescida. Bebe champanhe em pequenos goles porque a velocidade é inimigo do estômago e do dinheiro. Tenho feito muitos jantares românticos com algumas Marias deste país. E isso tem-me levado a ligar ao director deste jornal para que me adiante algum guito em troco de umas boas crónicas prometidas.

A minha Maria - que não é santa mas cura-me - está ali na porta ao lado, com certeza nua, a desejar que termine esta prosa para lhe dedicar outro tipo de versos, escritos à língua. Pudesse eu abreviar este texto numa só palavra e lucrar tanto como se escrevesse em todos os Homens. Podia ser a palavra amor, sexo ou pátria, tanto faz. O problema é o director do jornal, esse gigante atraente, que só me dá os cinquenta euros quando concluir este texto.
Para mal de mim, na redacção estão a exigir muito, pedem-me que meta sangue nas palavras, rodízios de amor, triangulações de amor. Para bem de mim, os cinquenta euros fazem-me cá um jeitaço danado, dá para ressuscitar pela milésima vez.

E depois a minha Maria que não é Maria que vai com as outras, está ali deitada, a sonhar com hortelãs, a adocicar a pele para que a minha boca fique doce também. Espera-me assim, com os desejos todos reunidos ao centro, a torcer-se para ambos os lados. Bem, tenho de ir. Lamento não ter escrito todos os pormenores de uma vida, mas ainda assim gostaria de sair de cabeça erguida, a haver aqui pelo menos um verso que sirva para letrinha de canção, um sonhar, um pouco de tinta fresca para pintar o tempo. Mas por favor, depois deste texto não me atirem à cara a fraqueza aqui descrita, nem façam troça da minha Maria que, coitada, também ela precisa dos cinquenta euros para se governar. Não é muito nem é pouco. São cinquenta euros a abrir um sorriso. É o preço que a minha Maria leva para que possa dizer que ela é minha e eu sou dela. Pelo menos esta vez, esta noite, porque amanhã é outro dia e eu, cronista insaciável, tenho de ir varrer estradas pelo dia fora. E quando chegar a noite, por esta mesma hora, escreverei à minha Manuela, à Paula, à Teresa, ou então à minha Joaninha do quarteirão mais abaixo, que todas me amam e me querem, pelo módico preço de uma crónica. Não é muito nem é pouco. São cinquenta euros, e é tudo o que peço, para ser feliz por mais ou menos três quartos de hora.