quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Uma história para os amigos

Às vezes, o bom seria esquecermo-nos de tudo, lembrarmos de nada. Começar tudo do zero, fazer de conta que nunca vimos nada daquilo que já vimos, que tudo é a primeira vez, incluindo pai, mãe, amigos, tios. Tudo. Em suma, sugar toda a informação do cérebro e deixar só aquelas partes em que o amor foi triunfador. Só essas. 
Se há recordações que devemos conter nos ficheiros secretos da memória para mais tarde contarmos aos nossos amigos, em vez de cairmos na desgraça de uma filosofia qualquer, esta é uma delas: 23 de Maio do ano de 2003. Eu, Jorge da Conceição, trinta aninhos à flor da pele, poeta do improviso, fiz-me à vida no meu Opel Kadett, a estrear nas minhas mãos, azulinho como o céu, sem horas para regressar, braço de fora, Tony Carreira no leitor de K7s; mexo no retrovisor e vejo que a estrada é toda minha, assim como os pensamentos quando faço contas de somar sobre as gajas que já comi. 
Vou em direcção à praia mais próxima por causa do preço da gasolina. Procuro um alento, um repouso, uma carinha laroca, um berço, uma qualquer coisa que me faça expandir. Percebo que toda vida esperei por mim, e eu aqui tão perto. Sorrio para o retrovisor e vejo que o dentista fez um trabalho porreiro ao completar duas falhas com dois dentes postiços. Não se nota nadinha. Perfeito. Sinto-me o Brad Pitt cá dos quintais. Faço um aceno aos pássaros que estão de regresso. A primavera é uma tia cheia de sorte e, a minha ingenuidade, para certos casos, há-de ganhar uma medalha. Continuo a conduzir. Por vezes sem as mãos no volante. Quero testar a minha gravítica melancolia. E acho que cheguei à praia a voar por cima da estrada. Acho. Ao fundo, uma esplanada cheia de gente. Do longe parecia caganitas de pássaro. Estacionei, saí do carro, e tratei logo de exibir as minhas bermudas haitianas, bem como os meus bíceps que indicam que já ergui meio mundo. Sentei-me e pedi uma Coca-Cola a uma menina toda flash. A duas mesas de mim, estava uma boazona, daquelas que a muitos dá vontade de lhe assaltar as cuecas. Trinta homens olham para ela, desejam-na à superfície do olhar. Todos lhe roubam um pedaço com os olhos. A vida é feita destes tipos de roubos. A boazona não liga puto a ninguém. Está na dela. Pelo tom de pele parece estrangeira, de um sul qualquer. Está concentrada a ler, e folheia as páginas tão lentamente que quase me mata de amor. Fixo-me nela e tento ser telepático, dizendo-lhe coisas belas e excitantes. Até que olhou-me. Olhou-me e fiquei com a suave impressão que escutara os meus pensamentos, aqueles belos e excitantes. Nos intervalos da observação, bebia Coca-Cola e sonhava com a alta possibilidade em sair da explanada com ela, passear no mar e afogar-me nela. Mas há trinta homens a pensar no mesmo, trinta leões à espera que a presa se decida. A antecipação é um jogo difícil. Há certas contas que não se podem contar. Estou no meio da indecisão. Apenas creio no meu romantismo e pouco mais. Divirto-me assim. 
Subitamente, um grandalhão enfurecido aproximou-se da boazona e abriu a mão para lhe desancar. De todos os homens presentes, eu fui o único que se fez ao grandalhão, dando-lhe um murro bem assente na zona dos rins. Depois ameacei-o de morte. Perante esta heroicidade, a moça ficou de beicinhos por mim, convidando-me para ir até ao quarto dela, onde há um champanhe à nossa espera. Fomos. E todos os homens ficaram a ver navios, roídos de inveja por eu ter sacado a boazona de olhos de mar. Cinco minutos, se tanto, bastaram para chegar ao hotel 5 estrelas onde ela estava instalada. Entrámos. Dispensámos cerimónias e começámo-nos a beijar desde o elevador até à suite. Tudo é belo quando o que sonhávamos passa a ser. Aquela nina em minhas mãos, toda a sua carne, os seus olhos ao pé dos meus - A loucura desejada. Fizemos amor numas posições de grau 7 de dificuldade. Foi por um triz que não desloquei a coluna. Demos cabo de duas garrafas de champanhe e adormecemos ao som de uma morna.


(Para os meus amigos, a história acaba aqui) 

Acordei pela manhã e, a moça, misteriosamente sumira. Não estava em lado nenhum nem deixara algum tipo de recado. Decidi ir apanhar ar. Ao passar pela recepção, o janota do mordomo, agora estranhamente mais sorridente, abeirou-se-me e apresentou-me um talão de pagamento de despesas – 347 euros, champanhe incluído. 
Soltei um foda-se. Do lado de fora da grande porta envidraçada, dois capangas, a barrarem caminho. Mas capangas mesmo. Não deu sequer para levantar a voz. De cabeça a doer mais do que todas as vezes juntas que já doeu, puxei do multibanco. Enfurecido, meti-me no Opel Kadett e fui como um míssil direitinho à esplanada. E lá estava ela, a boazona, a cabra, outra vez a ler, e os trinta homens filados nela. Quando me aproximei dela, com uma fúria do Além e pronto para levantar a mão e desancar-lhe, lembro-me de uma sombra por trás de mim, a aproximar-se. A agigantar-se. E não me lembro de mais nada. Excepto uma maldita dor de rins.

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