terça-feira, 18 de outubro de 2011

Artista de cinema

Olho para o céu, e nada. Olho para a paisagem lá do fundo, e nada. Olho para as minhas mãos, e nada. Olho para os meus bolsos, e nada. Olho para a minha vida e nada. Gosto de começos tristes, coisas que nos façam pensar por dentro daquilo que não está à vista. Gosto de olhar as mulheres e imaginar a roupa interior, a marca do soutien, o tamanho dos montes, o caminho para lá chegar, a ferida que cura os homens.
Conheci a Matilde nos anos noventa. Na altura ela era então uma costureira de ponto corrido e tinha umas mãos que eram uma verdadeira conspiração contra o divino. Mexia nos homens como um especialista em bolos de aniversário. Aos fins-de-semana dava duro num bar a servir bebidas na esplanada, com uma saiinha que, ao inclinar-se mais de 20 graus para a frente, via-se nitidamente as curvas apertadas onde qualquer um gostaria de se esbarrar. Era a boazona cá do sítio. Por obra do mistério, só o Quim tirou proveito com os seus dentes de fora. Ninguém queria crer que um gajo de sorriso tão desconchavado conseguira levar a melhor. Tudo bem que ele era formado em musicoterapia e que de vez em quando sacava do pífaro para impressionar, mas, que tem cu a ver com as calças? Depois soube pelos meandros da noite, quando o whisky faz saltar toda a verdade boca fora, que a coisa entre os dois deu para o torto, e o casamento que  tinha até data marcada, ficou em águas de bacalhau. Vinte anos volvidos, a Matilde continua igual a si mesma. A sua beleza bem que pode ser repartida por umas quantas feias que ainda assim não fica a perder. Apenas a dizer que a crise do país fez dela uma actriz porno de primeira com um considerável número de filmes espalhados em vídeo clubes. Diz que o faz por amor, para além do dom de representar. Eu abano a cabeça e solto um pois bem baixinho. Isto de amar sem tusto tem muito que se lhe diga. Para mim, a beleza vê-se na carteira de cada um. A Matilde quer juntar todos os amigos do liceu num jantar. A ideia não está má. Assim, será maneira de reencontrar a Jully, que a meio de uma aula de religião e moral ensinou-me a dar linguados de dez minutos sem dar descanso ao fole do pulmão. Respiração circular, dizia ela. A Matilde organizou então o jantar na sua mansão onde a luxúria reina e que pode fazer mal às vistas a tipos como eu cujo único orgulho é uma taça de quinto lugar em Kayak. A mansão, de facto, era uma coisa por demais. Ao olhá-la, senti-me o homem mais pobre desde que a humanidade existe. Aquilo ofuscava mesmo. Toda a malta do velho liceu estava lá, inclusive a Quinhas que faz makumbices, o Tone Rato, a Verónica igualmente gorda, o Santos que de santo não tem nada, a Bete, ah a Bette! Todos com um ar de bem colocados na vida. Ainda bem que pedi a jaqueta ao meu tio, pensei eu com os meus rojões. Uma sineta tocou para alertar que o jantar ia ser servido entretanto. Os centros de mesa tinham algo de admirável. Conversou-se sobre o passado e assuntos da ordem do dia. O vinho acendia olhares. Depois, fez-se um ataque cerrado à carne assada. Em três garfadas pus a minha barriga feliz. Olhava tudo e todos com pensamento turvo. 
Chateia-me a burguesia e as siglas de doutor que antecedem os nomes. Eu sou apenas o Bilinho, aquele a quem a vida nunca deu mas também nunca lhe pediu. Estamos quites. Fui à varanda fumar um cigarro. A Matilde chegou e fumou um também. O fumo fez puxar pela imaginação. Fiquei sem palavras quando a Matilde, do nada, me ofereceu um papel no seu próximo filme porno, a pagar bem. Tentei pensar duas vezes, mas, ao apontar o dedo para duas loiraças, boas como o milho, foi à primeira que aceitei. Combinámos para o dia seguinte as filmagens, na praia de Ofir. Passei a noite toda acordado, a fazer flexões e abdominais para ficar bem no ecrã. 

Quando cheguei à praia, pela fresquinha da manhã, estava tudo a postos. Meteram-me num barco a remos com as loiraças, mais o operador de câmara, que também é produtor, actor, guionista, etc. Em pleno mar, as loiraças – qual delas a melhor - começaram a marmelada. Despiram-se. Ficaram como Nosso Senhor as botou ao mundo. Fiquei logo…bem, vocês sabem. Estava eu ainda a dar aos remos, à espera de ordens do realizador para entrar em acção e mostrar o quanto valho, quando, subitamente, o barco sofreu um arrombo porque um negro musculado mas feio, miraculosamente saiu do fundo das águas, feito sereio, saltando para dentro do barco, pegando numa das loiras e pimba, catrapimba, “toma lá morangos”! Fixado na outra loira, antes de entrar em cena, puxei o meu lado de actor dramático com um snife de ar para dar mais essência à coisa.

Depois, sim, larguei os remos, desci os calções para mostrar a minha raça, a borboleta tatuada próxima da virilha, e fiz-me a ela com garra. Nisto, o realizador gritou, corta, corta! A cena parou. O preto ficou com o material ao dependuro. Irritado, o realizador chegou-se a mim e, ao mesmo tempo que me espetava o indicador várias vezes no peito, disse-me: tu, pá, ficas a remar, só a remar, pá, ouviste? Voltei para os remos, e o filme continuou.




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