quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Tal cão, tal dono


Sei que não é hora nem momento, nem sei se a paciência está em bons dias. Detesto deixar as coisas pela metade. Ter de subir as calças só porque palpita que vem aí o pai dela. Mas a vida é assim, um tira e põe, tira e põe. 
Estou condenado a nada. 
A Judite quer-me a tempo inteiro, como se amar fosse um ofício, uma declaração de princípios à qual não podemos mudar uma linha. Meus amigos, o amor quer-se cavalo à solta. Que seja assim. Estou marimbando-me para os cavalos. Há dias recebi uma queixa em casa, não por carta, não pela Internet, mas pela boca dos vizinhos. Que o meu cão anda a provocar desassossegos nas cadelinhas, ora vejam lá. Por jeitos, salta os muros para lhes chegar. Em suma, as cadelas estão em vias de ficarem todas prenhes. E, caso isso venha a acontecer, alguém terá de ser responsável pela ninhada. Neste caso, eu. Já lhe tentei chamar a atenção mas, que querem, o cão não me dá ouvidos. Está viciado na coisa. Que, ainda por cima, vejam lá o meu azar, está apaixonado pela cadela do quinto esquerdo. E foi precisamente a dona da cadelinha do quinto esquerdo que no outro dia veio tocar à campainha. Fiquei logo chateado. Primeiro, porque nesse dia perdi de ver as Tardes da Júlia. Segundo, porque não consegui pôr a gravar as Tarde da Júlia. E terceiro, por causa das duas alíneas anteriores. No entanto, assim que abri a porta, ao topar aquele cabelo loiro, aquelas pernas esguias, a fazer lembrar as moças da passerelle, ganhei logo outro jeito, uma afabilidade à Pai Natal, e disse-lhe: 

- Sim, faça favor de dizer.
- O seu cão é um malvado!
- Como assim?
- Anda sempre em cima da minha cadelinha. Ou lhe dá educação, ou então, o melhor é castrá-lo!
- Deixe estar que resolverei isso de outra maneira.

Não tive outro remédio senão o de chamar o Bobby a um canto e dar-lhe uma repreensão valente, assim como levar a cabo umas sessões espirituais para lhe limpar a mente de certas depravações. Duas semanas foram suficientes para que o Bobby amansasse das ideias. E, para sorte dele, não foram precisos remédios para lhe cortar os ânimos. 
O meu Bobby dedicava-se agora à leitura e a construir aviõezinhos de cartão. Tornou-se um exemplo de como se vence na vida com a força exclusiva da vontade. Se continuar assim, ainda há-de vencer umas olimpíadas de matemática. Começou a frequentar bibliotecas e pastelarias requintadas. Entrou em celibato e as queixas deixaram de surgir. Era um senhor cão! Os dias foram feitos nesta monotonia, sem grandes aventuras, grandes voos, grandes quimeras. A Judite voltou cá para casa, e com ela, as malas do passado. Festejámos a vinda dela em cima da máquina de lavar. A tal que tem o motor meio avariado para aproveitar a trepidação. Oh, como foi bom recordar! Enquanto a Judite fazia umas limpezas em casas particulares eu ganhava algum a colar cartazes de publicidade pela cidade ou a pôr folhetos nos vidros dos carros. Por vezes fazia-o de noite, pela fresquinha. O Bobby entretinha-se com a sua paz. A vida devagar sempre rola com mais cautela. À Judite deu-lhe para embirrar com o cão, que é um pasmaceiro, que não se sente à vontade em fazer amor comigo pois o danado do cão repara em tudo, põe-se a olhar com aqueles olhos fundos. Chegou a uma altura que foi do tipo: ou ele ou eu. Tinha ali um bico-de-obra dos diabos. O Bobby assistiu à conversa e decidiu por conta própria sair de casa. Dei pela falta dele numa manhã. Procurei por várias ruas e não o encontrei. Pus uns panfletos a dizer «Procura-se, dá-se recompensa». Pois este cão era tudo para mim. Não o trocaria por nada deste mundo.

A Judite não gostou da ideia e pirou-se sem dizer nada. Dias depois, bateram-me à porta. Era a loira do quinto esquerdo. Estava em lágrimas, a perguntar se vi a cadelinha dela, que por jeitos sumiu pela calada da noite. Convidei-a a vir sentar-se no sofá para animá-la com dois dedos de conversa, ou duas pernas, ou quatro pernas, tanto faz. Bebemos uns licores de umas garrafas que tinha por abrir, que deveriam ser para a altura Páscoa. Como todos os dias vinha cá a casa saber se havia novidades, começou a surgir entre nós uma química, e depois, uma física. 
Sem dar por nada, estávamos a viver juntos há dois meses, a chorar a partida dos nossos animaizinhos de estimação. Numa bela noite, a tomar embalo com umas beijocas, alguém ligou. Atendi.

- Olhe, encontrei o seu cão juntamente com uma cadelinha!

Com a mão a calar o telefone, olhei por uns segundos a minha vida, a loirinha, a cama e a roupa lavada, comer na mesa, o futuro a sorrir como uma criança. A vida está difícil para dois quanto mais para sustentar animaizinhos de estimação atrevidos, capazes de mudar o rumo das coisas. Desliguei o telefone friamente.

- Quem era, amor?
- Ninguém, ninguém, foi engano.

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