terça-feira, 13 de setembro de 2011

Pequenas memórias conventuais

A minha vida nunca mais foi a mesma desde que me mandaram embora do coro por falar obscenidades. Ninguém entende um pobre poeta, este gentil colaborador de revistas e jornais a troco de uma bucha. Voltei ao desemprego, à malandragem, ao sucesso entre os amigos. Eles gostaram de me ver e saudaram-me como se eu fosse uma criatura adorável. Feitas as contas, já lá vão vinte anos desde que fui parar ao seminário a ver se miraculosamente me endireitavam. Tenho saudades das freirinhas, dos bolinhos do céu, de lhes apalpar o rabo sem que elas imaginassem a intenção do acto. Mas não tenho saudades do Irmão Paulo, quando, à má fila, lia versículos bem pertinho do meu ouvido. Esse papa-hóstias, que estava bem era no Cambodja a ser...deixem para lá! Por sorte divina, salvei-me a tempo de não ser experimentado. Também tenho saudades de apanhar a Irmã Manuela a mijar de pé, no jardim, a fingir que cheirava as flores enquanto trauteava a Música no Coração.
Aprendi muita coisa por lá: a fazer a cama, a tomar banho diariamente, a enrolar charros, a esfregar o chão, a tocar prá missa, a reparar telhados, a amar a próxima...
Bem, pelo menos engordei com as batatas a murro que, quando não havia batatas, murro havia sempre. As freiras benziam-se assim que me viam. Achavam que eu era um pequeno demónio capaz de convencer um santo a pisgar-se da parede. A culpa não é minha. Fui abandonado ainda antes de nascer. Não sei como é que a minha mãe conseguiu uma proeza dessas, mas conseguiu. E vi-me sozinho no mundo. Achado num cesto à porta da taberna do Andrade. Andei de família em família. Os meus últimos pais adoptivos devolveram-me à rua. Mas graças a Deus tiveram o cuidado em me deixar de novo na taberna do Andrade, com um bilhete a dizer: não se aceita devolução!

Até que algum lambe-cus teve a infeliz ideia de me levar para o seminário. As noviças gostavam muito de mim, tratavam-me por menino e faziam-me festinhas. Mal imaginavam elas que havia um anjolas a crescer por dentro, com vontade de rachar-lhes o céu. Quando comecei a ganhar barba rija as coisas complicaram-se. As minhas mãozinhas indomáveis tinham de ficar quietas, e tinha dois padres austeros a tomar conta de mim. Sobretudo, quando as mui formosas freirinhas iam apanhar frutos das árvores e pediam-me para segurar no escadote. Ai de mim se lhes contemplasse as cuecas. Ia de joelhos até ao confessionário. Hoje sei porque me doem as dobradiças das pernas nas mudanças de estação.
Fiz a escola toda e fiquei a saber muitas coisas, nomeadamente sobre anatomia, já que cedo me revelei entusiasta em mexer em órgãos e afins. Um dia, mostrei a pila às meninas do coro, e elas, doidas como galinhas, puseram-se a cantar o tirolês. Com esta brincadeira levei com um processo em cima. Não na pila, mas sim na minha pessoa. A Madre chamou-me aos seus aposentos com um grito histérico de longe. E lá fui, triste e magoado, com a incompreensão do tamanho do mundo. Ordenou-me missionário em terras de África. Não tinha como desobedecer, interpretei isso como um chamamento, uma renovação espiritual. Só que, assim que me vi no meio de tantas negras rabudas e bonitas, foi o que foi. Acho que a minha maior missão por lá foi aumentar à taxa de natalidade. E novo processo contra mim. O que achei injusto. Contestei, invocando o amor sem protecção sendo a minha grande Obra.

Tive um regresso forçado e a Madre recebeu-me de vassoura na mão, que julguei que seria para bater, mas não. Tive de varrer dois hectares de terreno, inclusive as retretes. Foram vinte dias do pior. A rezar por mim abaixo. O certo é que me tornei menos zaragateiro e mais sociável e, como prova disso, foi a organização da Festa de Natal. Tratei de tudo sozinho, inclusive o convidar umas boas renas disfarçadas, que deram animação àquela pasmaceira toda. Eram duas húngaras e duas eslovacas. Só mais tarde tive de justificar a falta de vocação delas quando chegou a hora de cantar na missa do galo. Estava-lhe pelos cabelos. A Madre superior disse-me estar na altura de ir. De me fazer à vida. E logo naquele empírico momento, em que a minha linda vocação estava prestes a vir ao de cima. 

Tive de ir pregar o evangelho para outro lugar. Ainda ajudei à missa em duas ou três paróquias mas o resultado era sempre o mesmo: rua daqui p'ra fora, seu porco, tarado! Enfim, a vida é dura e a incompreensão mais dura o é. Tenho fé que as coisas mudem, que Deus ponha mão neste poeta gentil, que é dado por um judas. Bem, pelo menos salvam-me os amigos que, lá por ter andado vinte anos em instituições religiosas, julgam-me um iluminado. É certo, os meus amigos gostam de mim, abraçam-me quando me vêem, pedem-me a bênção, sabeis porquê, caríssimos irmãos? Porque sou perito em conversa fiada! Ámen!

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