sábado, 25 de dezembro de 2010

Enfim, nunca pior

Até aos 35 anos achava-me um tipo especial. A minha caixa de correio era invadida por cartas com declarações descaradas de fulanas que conhecia por aí. Na mesa de um bar, havia sempre um lugar para mim, davam um jeitinho para lá, para eu caber. Até a liberdade de pôr os cotovelos na mesa e tossir umas piadas me era permitido. Até essa data tinha um negócio que rendia, apesar de o Estado não me reconhecer tal mérito, uma vez que o evitava dado aos meus negócios pouco fundamentados.

Comprava relógios de pulso semi-avariados, ao que depois de algumas mexidelas neles, ficavam aptos para transacção e o lixo já não era os seus destinos. Vendia-os a preços de fazer crescer os bolsos e, o meu Ego alternativo, agradecia. Tudo corria de vento em pompa, inclusive tinha um projecto para uma casita metido na câmara, em andamento. Juntei negócios a outros negócios. Senhores do banco davam-me cumprimentos ainda que estivesse a dobrar a esquina. De sucata fazia obras de arte dignas de andar a mostrar de café em café. Ora bem, para além dos relógios, vendia uns cristoszinhos em imitação de pau-preto, umas pratas banhadas a ouro, etc.
Até que um dia deu-se o caso: o fornecedor resolveu bater a bota sem anunciar, assim sem mais nem menos, e eu, fiquei com o stock reduzido a meia dúzia de tringalhos para pendurar ao pescoço. Por consequência, deu-se a falência acompanhada de uma banca rota a todos os níveis: quer física quer mental. 
Agora estou na casa dos cinquenta, vejo a minha vida sendo ultrapassada por figurões mais habilidosos. Bem tento sociedades, mas como é preciso entrar com algum, fico-me pelo projecto rascunhado em guardanapos. Vou aos mesmos sítios e ninguém se chega para lá para eu poder caber. Deixei crescer pêra a ver se fintava a má sorte anunciada, mas mesmo assim entrei em descrença geral. Antes, as pessoas diziam-me, “tem tempo para pagar”. Agora, perguntam “deixa ver quanto é que tens na mão?!”, com o medo que lhes espete uns tentos. O trato de você desceu para tu isto, tu aquilo. O meu carro, que tanto sucesso me deu, tem neste momento um papel colado no vidro de trás a dizer “VENDO”. A minha prosa deixou de ser útil e agradável às moças que elogiavam os meus casacos de cabedal genuíno. Os meus amigos já não respondem às mensagens do telemóvel. No café não existe ninguém que se ofereça para jogar comigo à sueca. Por isso, dedico-me às paciências e, mesmo assim, só com algum trocadilho é que consigo ganhar. Os dias passam, as pernas vão-se cansando ao ponto de formarem um arco. O vento parece estar cada vez mais irritado com as questões humanitárias, a solidariedade já conheceu dias melhores; há caninos na opção do menu. Tudo mudou. As mínimas vontades caíram em desgraça. O planeta está decidido a não perdoar. Deus deixou recado mas ninguém quis ouvir. Qualquer coisinha que metemos à boca já dá vómitos. E por aí adiante. Por isso, eu não tenho a culpa que a Sorte tivesse guinado o volante no começo de uma recta. Ando só, embutido neste turbilhão de gente que se arma em feliz. Mas cuidado, nem sempre a fruta mais apetecível é a que tem melhor sabor! Há sempre um dia em que o sonho nos prega uma partida e aí, quero ver quem é que se vai governar com pouca sabedoria. De todo o resto, e alterando um pouco a cantiga, sou teso mas sou feliz!, passo manhãs inteiras no corredor do departamento das finanças, preenchendo formulários a velhinhos mal informados, a troco de uma bucha de qualquer ninharia, uma gorja; alguns até me chamam de doutor. Enfim, nunca pior!

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