domingo, 9 de janeiro de 2011

Escreve(dor)

Tenho o hábito de me sentar para escrever; nem é tanto o processo de escrever sobre as coisas que me ocorrem, mas sim o sentar, poisar o meu peso numa madeira, ganhar posição nas costas, ajeitar um pouco a posição das pernas da cadeira, depois as minhas, olhar-me num espelhinho que tenho aqui ao lado, se estou bem assim, se estou bem assado, cruzar as mãos, fazer estalar os dedos pelos nós, libertar o peso do corpo aos poucos, pousa-lo outra vez, 
sentir de novo a madeira nos elos da coluna vertical, 
passar as palmas das mãos pelos braços da cadeira, em simultâneo, como quem espalha creme no rosto, ser delicado ao ponto de sentir os nódulos da madeira, uma pequena farpa, algo triste dessa madeira que fora árvore, olhar o mundo por uma janelinha que tenho aqui ao lado direito, que no seu caso, será o lado esquerdo, mas isso não importa, porque o que importa é a verdade com que me sento para escrever, escolher um dos quatro ou cinco pensamentos que andaram comigo a semana inteira e que é hora de decidir, agir sem presunção, praticar um duelo a sós, mas que, enquanto não decido, preparo os olhos da mesma forma que se prepara uma jangada para entrar no mar alto e, feita uma breve psicanálise sobre o estudo da minha correcta posição de corpo em cima da cadeira, após averiguada a sentença sobre a primeira palavra a escrever, que tom darei ao discurso, se o texto terá as mesmas vítimas, 
se darei ao dia o sol devido, enfim, nesse espaço em que me ausento da perspectiva da folha branca, coço o nariz pela parte de fora, que é meu costume e normalmente funciona como estimulador, algo que me distrai, ou melhor, como se ao friccionar, puxasse o sangue para aquela zona, e assim, 
creio eu, a cabeça ficará mais oxigenada e propensa a ideias, mas claro que isto é apenas e só um acreditar, mínimo,
admito, mas lá no fundo é uma fonte especializada em puxar o sonho lá para cima, embora reconhecendo não ser essa a maneira mais eficaz de começar 
um texto com toda a categoria que me foi recomendado por um jornal que se diz nacional, ou pelo menos, assim o afirmou, mas quem sou eu para duvidar de certas coisas, onde, aliás, tenho provas dadas que acreditar é o meu forte, embora haja quem faça troça disso, sobretudo quando me sento aqui nesta cadeira confortável, diga-se, e ponho-me a olhar a página branca que às vezes me parece negra mas é branca como a noite que me pariu, ou, recorrendo a vocabulários mais concretos, é branca como a neve da serra da estrela, cuja melancolia leva-me arduamente a pensar nos enigmas da pedra, que, por razões não óbvias, considero as pedras nos termos simbólicos e matemáticos uma fórmula resolvente com exponencial infinito, nem que para tal se minta para, na grandiloquência, se chegar a uma verdade com sabor a deus, e disso não duvidemos nem tão pouco façamos uso de metáforas ilusionistas onde o poeta é capaz de se suicidar e voltar à vida entre uma frase e outra que é, precisamente, o mote que me fascina para o começo do texto que pretendo iniciar assim que puxar de um cigarrinho, metê-lo na boca, acendê-lo aproveitando a chama de uma vela, dar duas passas consecutivas, ignorando que estou a fazer coisas erradas, deitar umas vistas sobre o prédio da frente que continua em construção, se possível mandar um grito sólido, cuspir nas palmas das mãos para que não arrefeçam, estudar cada movimento milimétrico do meu braço, tanto esticado como flectido, olhar a luz do quarto com profundidade católica, arrastar um pouco, só um pouco a cadeira para a frente, achar o ponto de equilíbrio do meu corpo para que a naturalidade dos gestos se preze, depois, de seguida, esquecer o que sou, quem fui, e talvez, quem sabe, evite estragos de qualquer natureza primária ou subjectiva, e só acima disso, além disso, apontar a caneta ao papel com uma dose de quanto basta de ferocidade, contrair os músculos do queixo, apertar os dentes até um pouco antes da dor, pensar que sou um peito aberto aos assombramentos, enlouquecer com qualquer coisa, excepto com andorinhas, não sei porquê, não me pergunte, não estou aqui para responder, eu já lhe disse que estou aqui para escrever um texto e já por isso é que me sentei e depois disto vou fazer a barba porque tenho compromissos importantes com gente importante num local importante e dizer coisas importantes mas que no fundo está claro que tudo tem a importância de cada auto consciência, logo, concentro-me em tudo na vida e, se o sino toca, já toca tarde, e por falar em tarde, está a ficar muito noite, o sono aí vem, amanhã é outro dia, depois outro e a seguir mais outro, uma palavra de cada vez faz conceber uma grande invenção ou até um filho, a mim, por exemplo, custa-me bastante escrever a palavra amor, por sina minha é que estou sentado, pronto para escrever, e nada me ocorre, mas amanhã, ah amanhã, farei tudo de novo!

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