terça-feira, 4 de maio de 2010

As conhecidas e velhas crises

- Ai amor, deste lado faz-me cócegas!

- Roberto, assim não dá! Quero avançar na ideia e tu tens que neste momento exacto, nesta precisão microscópica, neste quase infalível segundo, virar a cara ao lado!
Tens que me dizer o que tens! Não foi para isto que casámos, pois não?! Dantes, eras diferente, a tua vontade sobrepunha-se mil vezes à minha, adormecias com a tua perna em cima da minha, era preciso muita habilidade para te acalmar, ou já não te lembras que era assim? Depois havia noites em que interrompias o meu sono para aquilo que sabes bem. Agora é isto!

- Ai amor, deste lado faz-me cócegas!

Se o casamento viesse com possibilidade de devolução, garanto que te devolvia já amanhã ao sindicato dos sem-amor! Os teus beijos são tão rápidos que nem despertam o interesse nem sequer o interessado.

Fazes ideia há quanto tempo não nos beijamos como dois adolescentes? Pois digo-te: talvez há mais de sete anos, ou oito, ou quem sabe vinte.
Vá lá, Robertozinho, o desejo vem de todos os lados. Não te importas que afirme isso? Já não tens ciúme?
Lembras-te quando perguntavas sempre para quem é que eu estava olhando? Pois é, querias a atenção toda, agora, é isto: eu deito para um lado da cama e tu deitas-te para o outro lado, feitos dois brinquedos desligados. Aquelas boas-noites quentes, apagaram-se, adormeces que nem bebé, com as meias calçadas, com o coiso apontado para o sul, ressonas como uma vara de porcos e só acordas de manhã feita avestruz a dar à luz. Olha, é tão verdade que até rimou!

Definitivamente, não queres saber mais de mim! Pergunto: que foi que mudou desde a última vez, que foi que mudou?!
Daqui a pouco até me esqueço como se faz e o meu sexo dará só para fazer necessidades. E nada mais!
Tens de me dizer o que tens! Por que é que negas o calor da minha carne! Roberto, se eu sei de algo que ainda não sei, ah rais ta parta, faço de ti e do teu biscoito um assunto encerrado. Não me tentes, ouviste! Sou capaz até de virar macho só para te pôr fininho. Deixa-me tocar-te, sente o que sinto. Vá lá, ao menos tenta!

- Ai amor, deste lado faz-me cócegas!

- Porra, para o teu humor! Nunca estás pronto quando eu quero que estejas! Só te oiço falar que fazes e aconteces quando tens os teus amigos por perto. Aí, quem te ouvir falar, com essa tua lábia de D. Juan cá do sítio, julgará que Deus te safou de uma má potência ou que ainda tens muitos quilómetros para marchar. Treta! Precisavas era que eu contasse a eles que tu e o teu Benjamimzinho estão acabados, mortos, nikles.
Ou cansou-te sempre e sempre o mesmo peixe, foi isso?! Ou gripou o motor como em tantas vezes?! Ah, não me digas que é outra vez a asma ou a figadeira! Nessa já não caio!

- Ai amor, deste lado faz-me cócegas!

Vá lá, Roberto. Dá-me uma palmadinha no traseiro como dantes fazias. Uma pelo menos. Vamos recordar velhos tempos, esquece as tensões altas e o açúcar no sangue.
Pega, toma este comprimido azul que comprei na farmácia, só para hoje, quero ver-te a engolir, vais ver que resulta, que aquece o corpo e a alma. Ferra-me na orelha, ó sim, diz-me aquelas palavras obscenas, mágicas, chama-me condessa que eu gosto, vamos comemorar como se fosse aquela primeira vez na garagem do teu pai quando eu tinha ainda a pele esticadinha, não sobrava no pescoço, a anca estreita, sem variz a incomodar, os seios coisa e tal. Vá lá Roberto, vamos comemorar pelo menos esta noite os nossos cinquenta anos de casados.

- Ai amor, artroses, artroses!

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