terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Às quartas estou no Paulista

Eu, Jorge da Conceição, filho de pais que nunca deram a cara à paternidade, com talento para o desenrasque, sempre à procura que uma luz me batesse, com uma história de vida que cabe em três volumes, de tantas voltas que dei ao mundo que acabei sentado numa mesa a dar lições de moral.


Aos trinta e cinco anos decidi estabelecer-me por conta própria. Montei negócio, sem ajuda estatutária e pouca solidez financeira já que os bancos parecem não entender lá muito bem a minha linguagem, pois quando falo em receber eles falam em pagar, e não há meio de sairmos desses dois termos.

Mas, com as minhas raras economias, lá investi num negócio que acredito que ainda possa vir a dar. Que era: policiamento de textos e crónicas de jornal.
A ideia não era má, dado o número de erros ortográficos e abuso de semânticas.
Apenas tinha o trabalho de ler todos os jornais, incluindo este em que o flávio silver escreve, e aplicar coimas a todo e qualquer escritor que maltratasse a nossa querida língua portuguesa.

Falei com alguns jornais e aceitaram a ideia como válida. Afinal de contas o que está em causa é a boa literatura. Com ou sem ajudas, lá comecei a apontar todos os defeitos gramaticais, as vírgulas fora do lugar, as exclamações quando no fundo seriam interrogações.
Bem, só num texto que policiei tinha o meu salário de Maio garantido.

Infelizmente, e como em todos os negócios, surgiu concorrência, forte, muito forte. Com especialistas e doutores de várias espécies, munidos com altas lentes de aumento para não deixar escapar letrinha nenhuma.
Inclusive, começaram a patrulhar textos meus, poemas antigos, pedaços de crónica deitados ao lixo mas que ainda perduram em valetas e, as coimas começaram a aparecer lá em casa. Com tantos dígitos que pareciam versos de amor.

Como não consegui pagar, decidi fechar a empresa de policiamento de textos para tentar sorte a tocar violino em jantares românticos.
A coisa ia mais ou menos. Até ao dia em que na mesa número sete estava lá a minha ex com um escritor de romances quadrados, o Bebécas. Não consegui evitar e dei-lhe com o violino mesmo nos parentais. E vim embora, a pensar no que seria a minha vida dali em diante.

Depois decidi ser conselheiro matrimonial.
Depois experimentei, sem dar em nada, encantador de serpentes.
Fui caçador de gambuzinos.
Vendi tremoços na rua.
Fui palhaço sem graça.
Lutei boxe em praça pública.
Fiz de cobaia científica.
Toquei reco-reco em banda desbandada.
Fiz de pomba branca num filme de terror.
Fui pagador de promessas. Ia a todas. Já que os outros não podiam, eu mesmo ia, passo a passo, com vinte latas de cerveja na mochila, mas que se esvaziavam a cada dez quilómetros, a cada cinco quilómetros, a cada vinte metros, até à última gotinha, para depois olhar para o céu e dizer: Senhor, alumiai meu caminho.

Era noite, e do nada surgiu uma motorizada de luzes enraivecidas que me encandeou e fez-me cair de borco. Gritei: Senhor, não era preciso exagerar na luz!
Cinco dias no hospital e, felizmente fez-se luz na minha vida, assim que o médico me disse: a sua reforma será antecipada. Você não pode mais fazer esforços.

Ainda ontem levei uma injecção no cu. Andei coxo por mais de meia hora. Deram-me umas vitaminas para os ossos a ver se a coisa começa a rolar. Os meus trinta e poucos anos já não me permitem grandes variedades nocturnas.
Assumo que sou mais caseirinho, mais do tipo de chinelo de quarto, prontinho para a cama. Oiço mais fado que música rock. Qualquer bocadinho de pão já satisfaz a minha fome. A minha alma está mais ligada às questões da natureza e ao chilrear dos passarinhos.

Com a luz que me bateu, aprendi a ler e decifrar estrelas, e é disso que me safo, a deitar cartas sobre uma mesa de café, a antecipar o futuro de muita gente. Muita gente como eu, que se quer encontrar mas falta-lhes o talento de adivinhar.
Portanto, se tem filhos na droga, ou você mesmo, bebida, psicoses múltiplas, a vida por um fio, maus-olhados, rumores na carne, coceira na testa, impotência indesejada, apareça, às quartas estou no Paulista, não custa mais que uma nota de vinte euros, livrar-se-á dos seus problemas, e eu, dos meus.

Um comentário:

  1. Olá, não sei qual caminho percorri para chegar até aqui, o fato é que cheguei, e fiquei a ler-te, gostei imenso da sua verve irônica e do seu humor na medida certa (ao menos é a minha medida). O seu currículo profissional é bem diversificado, está mesmo dentro dos parâmetros do mundo do trabalho, afinal, quanto mais "coisas" o profissional souber fazer, mais chance de manter-se no emprego. Claro que há exceções (como no seu caso, risos, desculpa lá, mas tenho que citá-lo), todavia, há a criatividade e és o maior nesse quesito. Fiquei a pensar se não pensas numa parceria e em dividir essa nota de vinte euros?
    Belo texto o seu!

    ;)

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