terça-feira, 26 de janeiro de 2010

assim se fazem os ateus

Foi num dia de ora sol ora chuva. Qualquer pedaço do céu daria um retrato. Mas todas as imagens de repente viram bruscas e sabe-se lá porquê.
O Jorge da Conceição foi levar o rebanho ao monte, subiu colinas inteiras, tocou com a cara no vento frio, há sítios em que não se espanta a solidão. Muito menos lá em cima. As ovelhinhas em pasto tranquilo, mamando erva da boa, os cavalos lá em baixo em liberdade, uma águia no alto supervisionando o ambiente, uns pequenos caracóis em banhos de sol, um coelho bravo que corre atrás de uma lagartixa que é manca. Enfim, a natureza no seu melhor. Jorge da Conceição sentado numa pedra fria, de realejo nos beiços tocando uma melodia nem assada nem frita, um som assim-assim.

Eu não falei mas, também havia uns insectos em acasalamento, umas flores espevitadas pela luz do meio-dia, uma cobra que de venenosa só tem o seu silêncio de andar. O ar é calmo e o pensamento também. Juntos fazem a harmonia. Adão e Eva assim se declararam um ao outro, se despiram sem ilusões ou manobras cinematográficas. Tudo é bom quando o nada se apodera.
Quem dera, diz o Jorge da Conceição no seu vago infinito de memória quando se lembra da última vez com a Isaurinda. Ele, despenteado com uma árvore em nortada. Ela, a mostrar como está crescida. E juntos percorreram as arábias um do outro, em suores escaldantes, que o põe a pensar no bom que seria se agora fosse outra vez. O realejo continua, como que chamando o queijo para dentro do pão. Só que aqui a fome é outra. Stop!

Eis que alguém surge ao longe. Um ponto a crescer no horizonte, em cada passo e gesto. Uma mulher que irá ter com ele, fazer amor com ele, ouvirá da boca dele todas as histórias. Afinal Deus existe, desabafa o Jorge da Conceição assim que topa que a mulher tem desejo igual ao dele. Pode até a dúvida ser um castelo que se desmorona, mas ele aqui será rei de uma qualquer aventura. Assim crê. Como acredita que este dia não terá fim nem não.
É preciso amar para não perder o ritmo sanguíneo. A deusa vem lá. Caminha como uma onça no seu recreio. Exibe a sua naturalidade com uma erva mansa. A poesia será um bom cobertor. Oxalá! O Jorge da Conceição sacode as calças, ajeita o colarinho, branqueia as palmas das mãos com um pouco de cuspo. Não me mandem parar este filme agora. Eu sou narrador mas não tenho nada a ver com isto. Não fui eu quem colocou a mulher no texto. Foi o Jorge da Conceição que no seu íntimo a desejou. O único sacrifício no amor é não se poder dar três ou quatro seguidas.
(Ninguém chora o seu próprio pulmão)
Eles cada vez mais perto um do outro.
(Porque somos animais tão lentos?).
O céu sente a aproximação daqueles dois corpos e lança uma chuva miudinha para compor o cenário. Visto daqui tudo é bonito. Ela acena. Ele também. A mulher tem um ar fresco de quem nunca roubou beijo a um outro homem. As suas pernas são de quem corre atrás de uma fantasia. Parece coxear um pouquinho, mas deve ser das irregularidades do solo. É alta como a que vira nos sonhos.

Jorge da Conceição pára de agradecer a Deus para puxar um cigarro e beber mais um gole do bagaço que o mantém. As horas deixam de ser horas para serem pássaros estáticos onde os podemos agarrar. O amor será entretanto. Daqui a dois ou três parágrafos. Tomara que sim! Quando, muito perto de se tocarem, de sentirem o que é quente, de saberem que no final a natureza irá aplaudir, seus lábios mexendo, como sede que morre, o aperto dos corpos, as mãos, as pernas, os olhos formando unidade, a mulher, que vem ligeiramente cansada de subir a alta colina, finalmente chegou perto do Jorge da Conceição, num respiro que deu para provocar nele uma pequena erecção.
Pede-lhe que a siga.
E voltam a descer a colina.
Agora os dois.
Talvez haja por ali uma casinha que melhor nos agasalhe, pensou o Jorge da Conceição.

A loucura mantém-se de pé. E o desejo nem se fala. Ela à frente, ele, ligeiramente atrás avaliando as curvas. Mas que curvas! Obrigado Deus! Terá motivos para cantar a beleza em todos os pores-do-sol. O silêncio diz mais que a verdade, mas nesta hora de anseios não chega. Quando ele ia para falar, com todo o seu sangue desperto, ela interrompeu-o e, em apressada e preocupada voz, falou:

- Rápido, o meu marido caiu do cavalo! Precisamos da sua ajuda!

E Jorge da Conceição, fulo como uma galinha excluída da cobrição do macho, olhou o céu e resmungou por entre os dentes: é por estas e por outras que assim se fazem os ateus!

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