quinta-feira, 10 de março de 2011

Eu, e o Lionel Richie

Somos todos uns impuros. 
A pureza deixou-nos aqui a navegar, cada um para o seu lado, a ver quem peca mais. O pecado é tão certo quanto os pássaros no céu. No Zacarias há sempre rock à sexta e, é bonito ver a rapaziada às cabeçadas uns nos outros. À vigésima cerveja envolvo-me lá para o meio, meto-me em despesas e depois vem os gastos em curativos. 
A mesinha do canto é a da malta, conhecida pela Malta da Grade. As conversas iniciais situam-se entre Teixeira de Pascoaes e Almada Negreiros, seguindo por caminhos metafísicos, curvando para futebol e desaguando em gajas. Aqui toda a gente tem poder de argumentação. Incluindo eu próprio que, num silêncio pouco recomendado, catrapiscava a empregada de balcão. 

A Bina separou-se há oito dias e anda desconsoladinha da vida. Já lhe disse que isso não vai lá com remédios mas ela não acredita, ou então, faz de conta não perceber a deixa. Tenho de me controlar para não esbarrar em caminhos sem volta, ou, se o ex dela me topa, faz-me em iogurte. O gajo pratica karaté e eu não pretendo ser makyuara de ninguém. Além de que, fiz a promessa de me tornar puro, purinho da silva. 
O Chico Zé entrou, e eu tinha ali motivos para ligar a dois ciganos e dar-lhe cabo da espinha. Anda para aí a dizer coisas a meu respeito. Mas contive-me, inclusive paguei-lhe um copo para resolver as coisas a bem. Ele aceitou e brindámos, mas à distância de duas mesas. Valeu a intenção. Parecendo que não, só este gesto de lhe perdoar, tornou-me mais leve. Só as Super-Bocks faziam contrapeso, caso contrário, voava. Começava agora a entender as palavras bíblicas que me deixaram no vidro da frente do meu Corsa: «Pratica o Bem e serás recompensado». 

Os Enlatados começaram a tocar. A bombar forte e feio com as guitarras feitas vacas loucas. O primeiro tema foi de arromba, um género de tributo aos Ramones. A malta vibrou e, de tanto vibrar, acabei levando com uma sapatilha da Puma na cabeça. Vi quem foi o gajo, aproximei-me com a lentidão à Bruce Lee, a perspicácia do Trinitá, o meu pescoço a dar estalidos e, quando se pensava que ia dar bronca, num gesto só, mostrei-lhe que estava em peace em love. «Sim senhor», comentaram umas garinas que, nos seus risinhos a fugir para tons agudos, desafiavam-me para outras lutas. Voltei para a mesa do canto, a espuma era notória na boca dos meus parceiros, pareciam ter bebido Sonasol. 
Só a Bina é que me tirava do sério, da minha crescente religiosidade, pois ela, no conceito de motociclista, é, digamos, uma mota pesada. Só na parte da frente tem dois materiais bélicos capazes de aniquilar qualquer homem de férteis imaginações. 

Mas eu não podia pecar, havia prometido a mim mesmo que o jejum, a pureza, era para cumprir como deve ser. 
Não que eu pretenda ser um Dalai Lama cheio de paz espiritual até ao tutano, nada disso. Apenas limpar-me por dentro. Pois toda vida pequei e esta seria a hora de encarar a vida mais solenemente. 
Mas a Bina…xau, virava-me o eixo ao contrário e lá tinha de  he deitar uns olhinhos desnaturados. Ela percebeu aquele meu olhar número sete, que só as mulheres com vontades são capazes de traduzir e, num aceno ao de leve, indicou-me o quarto. Eu não podia, iria quebrar a regra. Bebi um whisky de uma assentada e o meu sangue fez um estilhaço à Luciano Pavarotti. Deixei-me ir pela intuição, e fui. Pelas escadas comecei a pensar nas pombinhas da Catrina, no puzzle de mil peças que tenho para concluir, numa de desviar os maus pensamentos. Entrei no quarto e ela estava nua sobre a cama, como eu previra. Ainda para mais, Cristo na parede, olhando-me com cinco mil facas nos olhos, como quem: se pecas estás lixado comigo! Mas, ao sentir os chamamentos da Bina, vi que ela queria ser castigada como gente grande. Ainda cheguei a virar costas, a dizer-me não, não, não, mas, a safadinha, para que eu não resistisse à tentação, pôs Lionel Richie a tocar no aparelho. 
E eu, decididamente, contra os princípios morais, não lhe perdoei. 15 minutos depois, a luz foi-se abaixo mas, por incrível que pareça, ainda continuava a ouvir o Lionel Richie a cantar, num tom ainda mais doce. Achei deveras estranho, pois, como é que o aparelho dava sem energia? 
Pensei: humm, isto cheira-me a esturro! Dei um pulo da cama, vesti as minhas ceroulas azuis-celeste e fui dar com um tipo que estava dentro do armário, que era quem estava a cantar. Afinal a cabra enganou-me! Estava lá um jamaicano a espreitar-nos. Um cliente vouyer. Um rastafári com rastas até ao cóccix, a massajar-se. Sem qualquer receio, peguei nele à Van Damme, pelos tarecos, e atirei-o pela janela abaixo que, por azar, caiu em cima do meu lindo Corsa. 

A Bina ficou tola porque, com esta coisa de atirar o gajo e ele entrar em coma, acabou por não receber guito nenhum. 
Chamei-lhe quantos nomes havia, incluindo em castelhano. E basei, na esperança de encontrar um Deus dentro de mim, que nessa altura devia estar a enfrascar imperiais numa aorta qualquer. 
Porra!, e eu, de tão bom rapazinho que era, passei a adorar todos os demónios. Querem saber?, até hoje nunca mais consegui ouvir uma música do Lionel Richie!

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