segunda-feira, 28 de março de 2011

Zeca, o temível



Na escola era o matulão, o eterno repetente, ameaçava de porrada toda a gente e, quando ia à baliza nos campeonatos da escola, ninguém lhe marcava golos visto que o seu corpo, do tipo Golias, ocupava os dois extremos dos postes. O Zeca Flores era assim em puto, o que não dava dentro da sala de aulas, dava lá fora no recreio. Era ele quem baptizava os novos alunos com alcunhas do tipo: o Caga-Pó, o Penico, a Maria Ratona. 
Ele era apenas o Zeca e, se houvesse alguém que lhe tratasse por Zeca Flores, ai dele, pois logo corria-se o risco de cair chapada grossa. 
Lembro que era bom ser amigo dele, ser da equipa dele, estar do lado dele nas birras no recreio. Adivinhava-se já na altura que se o Zeca fosse bem encaminhado, poderia dar em bom pugilista, uma vez que as suas mãos eram verdadeiras raquetes, ou, se por acaso fossem ao encontro de uma cara, com certeza que era para parti-la. I
sto vai para aí há uns bons quarenta anos. 
Das histórias que se contam sobre o temível Zeca, das centenas de flexões que fazia no chão como apostas, é sempre pouco para se contar, pois ele era bem mais do que se conta.
Quando foi para os páraquedista, lembro, admirava a malta com as histórias que trazia: «Só de uma vez foram cinco, pá, e dois deles eram ciganos!» Depois terminava as conversas rindo, com uma máxima das suas: «Ó pá, menos de dez é manteiga!»

Nunca ninguém o vira à porrada, mas nem valia a pena, porque olhar aquele metro e noventa de pura fibra, o melhor mesmo era não ver. A bem dizer, o Zeca tinha ares de ser um animal feroz, tal Shwazenegger lá da aldeia, onde houvesse confusão, lá estava ele, de voz grossa, feito salvador da pátria, pois só a sua presença, os seus ombros largos, o seu olhar a cegar, equivalia a ter uma pistola prontinha a disparar. E arrumava o assunto só com um sopro. Mas nem tudo é positivo no seu historial de memórias, até porque, segundo ele, no seu currículo consta com sete navalhadas superficiais na barriga, um tiro no ombro e uns quantos murros no escuro. Marcas estas que, ao exibi-las perante os amigos onde ele era o centro, dispensa argumentações, além de intimidar qualquer um. Bem, digam o que disserem, Zeca, o Grande, fez História no seu tempo. E contra a História não há historiadores. 
Mas o destino é sabido que não dorme e, para alguns pode até ser um cabrão, mas para outros, é um bem-feita. Pois o tempo, apesar de andar para frente, não se esquece do que vai para trás. Digo isto porque, ironias das ironias, o Zeca arranjou uma moça para casar que é daquelas que tanto cala como grita. Ora, e logo ele, o todo poderoso, o ex-Action Man, tinha como esposa uma mulher que arrebita cachimbo, e não se deixava ficar por menos, uma força da natureza quando abre a garganta para o insulto. 
Claro que se isto vem a público, à baila de ouvidos maldizentes, lá se vão os méritos do passado e, de feroz, passa a ser conhecido por qualquer nome amaricado, pois a mulher dele tem um feitio danado, daqueles de levantar telhas do telhado da cabeça.

Certa ocasião, pelo cheiro perfumado que a roupa do Zeca tresandava, a mulher logo desconfiou que o marido andaria a meter o pé na argola. Ora, assim que chegou a casa, nem esperou que ele pousasse a gabardine no prego atrás da porta, armou logo o pandemónio, fazendo com que a vizinhança - como é comum nestes casos - tivesse ouvidos à espreita. Primeiro ameaçou-lhe com os olhos numa espécie de escolha de vida ou morte, depois atirou-lhe à cara uns palavrões bicudos de meu este, meu aquele, e de seguida mandou-lhe um sapato à pinha que o fez largar um grito contínuo numa perfeita imitação sonora de alguém que vem a cair de um vigésimo andar.
Foi este mesmo grito que fez com que a vizinhança que fez com que a vizinhança se pusesse à janela, despercebidamente, como quem não quer a coisa, embora temendo que o Zeca fizesse acontecer ali uma desgraça, pois quando a fera acorda

Mas no dentro da casa a coisa estava para piorar, a calma num estado lastimoso, a mulher farta de desculpas, de ele se esquivar às respostas e, por saber que a vassoura é o melhor detector de mentiras, deu a correr atrás dele com a vassoura em punho, abriu a voz numa transcendência quase até ao recto, e o Zeca, o temível Zeca, ao ver que aquilo era mesmo a sério, desejou pela vida e, ao ver que porta de saída era a única escapatória, apertou então os tomates entre pernas, deu à caçoleta com o rabinho entre pernas só a pensar na sua sobrevivência. 
Assim que se viu na rua, livre de levar umas valentes vassouradas, foi então que topou que os vizinhos estavam plantados nas suas janelas, fingindo que o mundo não lhes pertencia. 
Então, calmamente, como quem não quer a coisa, ajeitou os colarinhos, viu que horas eram no relógio, rodou o pescoço para a porta onde a sua mulher moía-se por dentro, e o senhor Zeca, que é todo dado a imaginações, disse-lhe em tom armado em endiabrado: - Para a próxima levas mais, ouviste?!

Um comentário:

  1. Um texto cativante...
    O título do blogue soa a questão filosófica...

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