sábado, 13 de fevereiro de 2010

crónica sobre a crónica mais triste do mundo

Ninguém sabe quando nem como, mas aconteceu nesta vida, neste planeta, neste continente, neste país, nesta cidade, nesta aldeia, nesta rua, nesta casa, neste quarto, que inventei a crónica mais triste do mundo.
Não era coisa de vida real ou alegorias de cavernas, era um texto que falava de terra e oceanos sem nunca ter saído daqui. Eu próprio chorei em cada verso, ainda hoje tenho marcas fundas debaixo dos olhos que, para ver ao longe, agora preciso de óculos graduados. Mas tive de lutar até ao fim, rasgando meu corpo para alcançar o verbo que se escondeu atrás de um substantivo que era filho da mãe. Cada parágrafo era mais uma tristeza. Caramba, não bastava o dinheiro que gasto em raspadinhas!
Um anjo avisou-me que parasse, pois os danos são de cegueira para cima e caganeira para baixo. Arrisquei. E o anjo sumiu no seu Ford Fiesta a gasóleo. Desde então fiquei só, na possibilidade de tornar óbvio todo o obscuro que me rói. Mas não tenham pena de mim que o cangalheiro também não tem, pois já o vejo sorrindo, asquerosamente, com os seus dentes que era de outro que morreu.

Pedi a Deus uma forcinha, e ele respondeu-me assim: “agora não, tenta mais tarde”. Infelizmente terminei a crónica, com pequenas minas em cada palavra. Avisei o leitor para que tivesse cautela, não fosse ele cair em tentação de chorar feito uma Madalena arrependida. Mas nem isso evitei. Na semana em que me leram, os psicólogos deram mais de mil consultas a pessoas que, sem razão aparente, se entristeceram ao ponto de roçar a loucura. Inicialmente, pensou-se que seria o facto do Cristiano Ronaldo começar a cantar, mas não, essa súbita tristeza foi causa\efeito da leitura à crónica mais triste do mundo, que, entre outras contra-indicações, aguarda aprovação para entrar no livro de s. Cipriano dentro de uma arca de gelados.
Toda a cidade envolveu-se em mistério, e as autoridades deixaram bem claro: ninguém chega perto dessa crónica! O exército montou um esquema. Não viesse uma palavra por aí e fizesse surto na população.
Caso semelhante a este só mesmo a gripe espanhola. Alerta vermelho em todo o país. As sirenes tocavam pelas 21:30, os civis obrigados a recolherem-se às suas casas e, enquanto isso, no silêncio dos silêncios, cientistas de várias nações, incluindo Freud, que fora repescado do túmulo, reuniam-se em subsolo na esperança de inventar vacinação.

O clima era tenso,
estradas cortadas,
os hospitais à pinha,
crianças, velhos, grávidas, padres, políticos,
ninguém escapava à tristeza da triste crónica, que em sete dias quase fez parar o país. Pelo que se sabe, nem a Amália no seu melhor causou tanta choraminguice.

“Antes viesse um dilúvio!”, comentavam familiares das pessoas afectadas. Pensou-se também se não seria o Bin Laden quem estivesse por detrás deste cenário. Alguém veio a público dizer: se o autor resolve escrever mais duas ou três crónicas de igual género, preparem-se para o pior! Arma química! Nem filósofos, catedráticos de língua portuguesa românica, quanto mais curandeiros, que logo viram uma oportunidade de negócio, fazendo uns trabalhinhos de espiritagem nas casas dos incrédulos.
E o pior era o contágio. As pessoas choravam por tudo e por nada. Pareciam bebés quando não querem ir já para a cama. Mal começavam a ler choravam e deprimiam-se, ou vice-versa.

Por estas e por outras, especialistas em fatos especializados, recolherem todos os jornais com o máximo de cautela, à base de pinças. Pois se uma crónica deste calibre caísse em mãos alheias, já se imagina o fim. Chegaram até pedir auxílio ao super-homem, mas por azar encontrava-se nas Caraíbas a curar uma enxaqueca, ou melhor dizendo, uma kriptonitite aguda. Já o homem-aranha, estava a rodar mais um filme.

Eu, como autor, fui chamado a depor e, no momento em que subi as escadas da barra do tribunal, as pessoas em fúria, munidas de tomates, ovos, mp3 avariados, CDs do Emanuel, ao lançarem sobre mim sem me avisar, lógico que acabei ficando com a cara numa salada. O juiz estava de máscara a tapar-lhe a boca e o nariz. Os polícias idem aspas. Os jornalistas tinham a gola das suas camisolas até ao nariz afim de se protegem também eles de uma possível transmissão de vírus triste. Um passo em falso e a tristeza propagar-se-ia.
Por isso cautela. Muita cautela. O original estava ali, dentro da arca de gelados. Sentia-se o pavor a vinte quilómetros. O juiz ordenou-me que lesse a crónica em voz alta. Mas antes disso todos os presentes começaram a fazer cóceguinhas uns aos outros para que o efeito fosse menorizado.

Quando me dirigi para arca de gelados, ouviu-se um rufo. Talvez apenas dentro de mim. Peguei cuidadosamente na folha. O tribunal tinha todas as janelas fechadas. Todas as pessoas tinham suas bocas fechadas. Também o silêncio estaria de boca fechada. Agora vou contar como foi. Comecei a ler: ” era uma vez…”
E, dito isto, veio um vento que não se sabe de onde e levou a crónica para um lugar que ainda hoje não se sabe. No entanto, encontra-se pessoas por aí, tristonhas, tão afectadas ainda que nem conseguem trabalhar. Reclamando os seus direitos, pensões, reformas, indeminizações, enfim, coisa de português mesmo, de quem não chora não mama.

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